Literatura - Sergius Gonzaga

OBRA-PRIMA DE DOSTOIÉVSKI

OBRA-PRIMA DE DOSTOIÉVSKI

WhatsApp

No número anterior da ONNE, propus que dedicássemos algumas horas de nosso verão à leitura de alguns romances clássicos. Romances que atravessaram o tempo, mantendo intactas a sua grandeza e a sua possibilidade de nos surpreender pela força estética e pela revelação de paixões humanas desmedidas.

Insisto no conselho de que a fruição dessas ficções supremas da humanidade deve ser feita sem pressa, com a serenidade e a paciência de alguém que bebe um vinho refinado. Só então, alcançaremos o significado mais profundo de obras que permaneceram como o apogeu do patrimônio cultural da espécie

Capa de edição russa de “Crime e Castigo, na revista Russia Beyond
Personagem Raskolnikov em foto do filme russo “Crime e Castigo”

Entre as grandes narrativas do século XIX, Crime e Castigo (1866), de Fiódor Dostoiévski, talvez seja, até hoje, a que mais impressiona os leitores. A trama, centrada no duplo assassinato cometido pelo jovem niilista Raskolnikov, em uma São Petersburgo opressiva e inóspita, dá a impressão de um relato de natureza policial. Sabemos quem é o criminoso, mas as autoridades não conseguem resolver o enigma.        

No entanto, a investigação que confere certa atmosfera de suspense ao texto é secundária diante das reações e convulsões psicológicas do protagonista frente a seu próprio ato. Típico filho da modernidade, intoxicado pelas teorias radicais que germinavam na época, Raskolnikov é cético, materialista e individualista. Deseja provar que a liberdade do ser, em um mundo sem Deus e sem limites morais, torna-se absoluta. Portanto, sua fria ação criminosa é justificada racionalmente.

No decurso da história – que funde magistralmente momentos de profunda introspecção com trepidantes cenas do mundo exterior – percebemos que a realidade começa a perseguir e dissolver as fantasias despóticas do jovem niilista, arrastando-o a um conflito moral de dramática intensidade. Em seu entorno, gira alucinada e pateticamente uma extensa galeria de personagens (todos eles também dilacerados por contradições e crises éticas), formando um quadro vivo da sociedade urbana da Rússia oitocentista.

A experiência de ler Crime e Castigo é única: submergimos no narrado e sufocamos, sem poder respirar. Walter Benjamin escreveu que nas obras-primas de Dostoiévski perdemos a consciência. Quando as terminamos, precisamos de um tempo para nos recuperar do impacto emocional que nos causaram. Sua ficção é como um laboratório dos mais horrendos e fascinantes voos imaginativos criados na literatura.

Uma leitura incontornável.

Sergius Gonzaga

Foi professor de História da Literatura Ocidental e hoje trabalha com Literatura Brasileira (UFRGS). Ministra cursos e palestras no Capítulo 21 (e-mail: cap21cursos@gmail.com)

@gonzagasergius

/gonzagasergius