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A LUZ DE SIRON

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Por Criz Azevedo

Pintor, escultor, ilustrador, desenhista, gravador, diretor de arte. Ele é Gessiron Alves Franco no passaporte, Siron Franco para o mundo. Um dos artistas visuais de maior destaque no cenário brasileiro, responsável por obras de arte em importantes exposições e acervos de diversos países. Com sua instalação “Ressurreição”, nos dá a honra de tê-lo como capa nesta edição da Onne&Only.

Atendo ao telefone e escuto “Ave Maria”, de Franz Schubert, fazendo a trilha da nossa conversa. Era Siron Franco com sua generosidade em nos abastecer de conteúdo e complementar com saborosas histórias à entrevista concedida, dias antes, com a presença do grande parceiro e colunista da Onne, Cezar Prestes, amigo do artista.

Ao ouvir Schubert, imaginei que ele estivesse no atelier, após saber de algumas curiosidades deste filho de Goiás Velho (GO), nascido em 1947, caçula de 10 irmãos, que desde muito jovem elegeu lápis e pincéis como companheiros de jornada. Conhecido pelo primor da técnica em suas pinturas, ele foi longe, ganhou prêmios. Trabalhou em direção de arte com Washington Novaes, um dos grandes documentaristas brasileiros, percorrendo lugares como a Amazônia e Pantanal.

Amazônia em documentário com direção de arte de Siron / Foto: Divulgação

Conheceu índios, imergiu na cultura da floresta. Em diversos momentos de nosso bate-papo, trouxe memórias relacionadas aos pais e aos indígenas. Como bem destacou Cezar, “Siron é de uma geração da cultura brasileira, como Ferreira Gullar e Darcy Ribeiro, que valorizavam boas horas de conversa, a troca de experiências”. E o próprio artista faz questão de frisar que é um deslumbrado pela vida: “Amo meus amigos, acho um privilégio os amigos que tive e tenho”.

Em suas narrativas, Siron Franco expressa questões sociais e ambientais inspiradas em fatos e na forte intuição que o caracteriza. Sua forma de trabalhar vai além da técnica, como você poderá ler nesta entrevista.

Artista e índios nas gravações de documentário no Xingu / Foto: Divulgação

Como tem sido trabalhar neste período da pandemia?

Eu nunca morei em ateliê, só usava este espaço como estúdio. Era uma antiga vontade. Na quarentena, acabei realizando essa experiência, e ela tem sido maravilhosa. Comecei a criar galinha, aprendi a cozinhar, produzi mais do que nos últimos 10 anos e de forma intensa. A pandemia bateu de um jeito diferente, não me apavorei a ponto de me isolar totalmente das pessoas como fizeram alguns amigos, mas acompanho as notícias e uma das minhas filhas está morando comigo.

O artista (2020) e “Quinta Miragem” (2019) / Fotos: Divulgação

Qual seu olhar sobre este momento do Brasil?

O ano de 2020 foi de perplexidade, além de perder amigos e pessoas que admirava para a Covid-19, houve muita falta de informação. Teve gente achando que a terra é plana, além de negacionistas da doença e de outros fatos comprovados pela ciência. É tão retrógrado assistir a isso. Nunca achei que o Brasil iria chegar a esse ponto, foi uma marcha ré, uma estupidez, e isso se refletiu e está se refletindo em outras coisas. Eu acho que a falta de educação e de cultura cria seres humanos preconceituosos. A cultura te mostra que a vida só existe por causa da diversidade. E a espécie humana é uma só. Essas culturas homofóbicas confundem e criam problemas sérios para a humanidade e para elas mesmas. Essas pessoas têm medo do traveco que tem dentro dele, da bicha que tem dentro dele. Pois não há lógica uma pessoa ser contra alguma coisa que não diz respeito a ela.

Nunca fui de política partidária. Costumo dizer o seguinte: não tenho partido, eu tomo partido. Eu me envolvo porque sou cidadão. Aprendi em casa, não faço isso como artista, faço porque sou cidadão. Se os partidos estivessem realmente interessados em ajudar o país, eles se juntariam, mas não, eles estão interessados só neles, disputando campeonato. Nosso país é maravilhoso. Não devemos falar mal dele por causa de 1.000 pessoas que tentam destruí-lo.

“Décima Sétima Miragem” (1996/2019) / Foto: Divulgação

Como foi a inspiração para criar “Ressureição”?

Eu estava envolvido com pinturas de uma outra exposição que será lançada em abril de 2021, a “Branco de Medo” - com telas em branco em que a nitidez se dá a 90 cm do objeto. Enquanto limpava o estúdio, vi um manequim de pano num canto, limpei e pendurei no varal. Era noite, observei que ele tinha um certo movimento e projetava sombras. Aí, não sei te explicar, veio a ideia, e já estava vendendo minha Land Rover para comprar mais manequins.

“Ressurreição” é composta por 365 deles, suspensos por cabos de aço, numa homenagem às vítimas da Covid-19 e aos profissionais de saúde. Ao mesmo tempo, é uma celebração à vida.

Desta ideia, veio outro projeto, o livro “Antes de Tocar o Céu”, que traz imagens das sombras flutuantes desses manequins, projetadas no chão de terra e nas paredes do atelier, como sombras de Goya.

“Ressurreição” (2020) Fotos: Divulgação

Fale sobre seu processo criativo:

Trabalho de manhã, à tarde e de noite, sempre com música. Para cada série de pinturas, elejo uma trilha, e ela toca seguido. Tenho séries que demoro para deixá-las prontas. Sou muito crítico de mim mesmo. Na pandemia, fiz “Ressureição”, o livro “Antes de tocar o céu” e as pinturas a serem lançadas em abril. Sou compulsivo. Mesmo nas férias, estou fazendo algo, fotografando. Descansar me cansa. Gosto de filmar, desenhar. Trabalho com vários materiais, seja tridimensional, bidimensional, vídeo. Na verdade, passo o dia inteiro brincando com isso, então, de repente, pah! vem uma ideia.

“Décima Primeira Miragem” (2006/2019) / Foto: Divulgação

A música ajuda na fluidez?

Mais do que isso. Não vivo sem, não funciono. Quando viajo, o pessoal do estúdio deixa a música daquela série de quadros tocando. Isso ajuda a imantar o ambiente. Faço questão. Percebi isso quando viajei e voltei. Comecei a pintar, achei estranho, eles tinham mudado a música, nada funcionava. Escolho uma para cada exposição. Se levar dois anos para produzir os quadros, o povo aqui fica louco.

A trilha é como um mantra nesse período, e ela vai entrando em você. Às vezes, demoro para escolher a favorita. Outras, parece que ao ouvir, vêm tudo pronto para desenvolver um projeto, como a trilha de Michael Nyman, do filme “O Cozinheiro, o Ladrão, a Mulher e o Amante” [direção de Peter Greenaway], e a de Peter Gabriel em “A Última Tentação de Cristo” [dirigido por Martin Scorsese]. Já criei ouvindo “Bachianas”, de Villa Lobos.

“Décima Quinta Miragem” (2006/2019) / Foto: Divulgação

Você é um homem místico, ritualista?

Lido bastante com sonhos. Durante um tempo, li muito Jung. Quando garoto, Castañeda. Mas só trabalhei por efeito com Daime no passado. Fotografei e filmei, no entanto, não curto alterar meu cérebro. Gosto de alterar através do cansaço. Isso aprendi com os índios.

Quando garoto, houve uma chacina em Goiânia, que acabou influenciando muito meu trabalho, chegando a sonhar com aquilo. Quando se vê aquelas figuras cortadas que fiz nos anos 70, elas não estavam apenas falando das torturas da ditadura, eram também os pesadelos que tive da chacina. Cheguei a pensar que estava ficando esquizofrênico, pois já recebi muita mensagem em sonho que se materializou em quadros, esculturas, instalações. Antes, quando tinha um sonho ou ideia no meio da noite, ia para o atelier. Hoje anoto.

A água, por exemplo, tem memória, isto está comprovado por estudos. Sempre que bebo um copo d’água, antes agradeço por ela fazer parte de mim. Sou um homem grato por tudo. E esse exercício de agradecer faz muita diferença.

Cartaz campanha prevenção ao câncer de mama / Foto: Divulgação

Há forte conexão com o meio ambiente, na denúncia presente em trabalhos como “Rua 57”, sobre o desastre do Césio 137 em Goiânia, na intervenção em Brasília para o dia Dia Mundial da Água, no alerta sobre o desaparecimento das abelhas numa intervenção em Goiânia, entre tantas iniciativas. Fale mais sobre este tema.

Meu pai falava que o negócio não era ouro, e sim água. E a crise hídrica no mundo é antiga. Sem água não há vida. A pandemia provou que o mar ficou limpo, apareceram animais nos canais em Veneza. Ruas de Bombaim cheias de pavões, os bichos estão fazendo a farra. O homem só provou que destrói. Nós temos que refazer esta ideia de que há um paraíso em algum lugar. O paraíso é a terra. Esse pensamento em relação ao meio ambiente vem desde meu pai. Ele dizia que ao sair de casa, você entra no grande jardim que é a cidade, não jogue nada no chão.

Eu nem sabia que existia a palavra ecologia quando comecei a tratar sobre questões ambientais em Goiânia nos anos 70. No projeto Ver-a-Cidade, fiz um mapa e apontei os lugares violentos e de degradação ambiental. Ou seja, minha vida toda foi essa mistura, sempre me envolvi nessas questões. Também teve o grande mapa do Brasil formado por antas entre outros projetos.

“Antas” (1986) e “Caixões” (1990) / Fotos: Divulgação

Você despontou muito cedo no cenário das artes. Como foi lidar com isso?

Tive que trabalhar desde cedo meu ego, pois tive muita sorte no início da carreira. Ganhei prêmios e dinheiro ainda bem jovem - o que pode subir a cabeça e ser perigoso – II Bienal de Salvador, em 1968; Melhor Pintor Brasileiro, na XII Bienal de São Paulo, em 1975; Salão de Arte Moderna, em 1975, que propiciou uma longa viagem pela Europa.

O trabalho sempre me salva. Não conseguiria viver sem me expressar. Desde cedo essa coisa me persegue. Eu tenho que fazer, sou um fazedor de coisas. É muito louco, pois isso me acalma. Nunca fui preocupado com coerência. No começo, eu achava que não tinha personalidade. Fui ficando mais maduro e descobri que não tenho, e é isso o que me salva.

Acho que o fato de passar a infância sem tanta tecnologia como hoje, e bem menos ferramentas de acesso à comunicação, fez com que a imaginação fosse muito forte. A falta dessa facilidade - que traz tudo pronto - é bom para o nosso cérebro. Nosso cérebro precisa de desafios.

“Décima Oitava Miragem” (2019) / Foto: Divulgação

Você conseguiu realizar tudo o que gostaria?

Eu não penso no amanhã. Vem a ideia, e faço. No fim, tudo dá certo. Mas sempre quis ter um bom atelier, bons materiais para trabalhar, e conquistei isso. A arte é vital. Sempre fui egoísta em relação ao meu trabalho, sou super mãe dos meus cinco filhos, mas minha atividade é prioridade, porque não é uma atividade profissional. É uma necessidade de fazer essas coisas. Gosto muito do que que ainda vou fazer.

Livro arte “Antes de Tocar o Céu” (2020) / Fotos: Divulgação

Instalação “Ressurreição”, de Siron Franco

Período: da última semana de janeiro à última semana de março/2021

Horário: de terça a domingo, das 10h às 18h

Local: Área Externa do Memorial da América Latina, em São Paulo

OBRA DE ARTE EM LIVRO DE LUXO

As sombras flutuantes dos manequins da instalação “Ressureição”, projetadas no chão e nas paredes do atelier de Siron Franco, geraram 11 fotografias poéticas e misteriosas transpostas para o livro “Antes de Tocar o Céu”. Cada fotografia tornou-se uma fotogravura impressa, com o acréscimo de folhas de ouro no papel. O livro traz poemas de Ferreira Gullar e propõe o diálogo das sombras de Siron com a obra do poeta Augusto dos Anjos.

Produzido em Lisboa, pela editora Urucum, é rigorosamente artesanal e um verdadeiro objeto de arte. A tiragem, em grande formato, é de apenas 47 exemplares, assinados e numerados pelo artista, impresso em papel algodão, tradicional para gravuras, da alemã Hahnemüehle, e as fotografias são impressas em giclée sobre papéis para Fine Art. Disponível, sob encomenda, em www.urucum.com/ceu

@urucumeditora