Quem ama moda talvez tenha assistido aos desfiles da última SPFW em formato híbrido (27 presenciais e 24 virtuais) e refletido sobre as noções de escassez e excesso. Sim, a moda precisa se recuperar, mas o meio ambiente sofre as consequências da produção e do consumo nesse setor - que paradoxo - enquanto alguns sequer têm o que vestir ou se vestem de sobras, outros descartam roupas seminovas sem o menor peso na consciência, diretamente no lixo doméstico, inclusive. Após as recentes reportagens sobre a “pandemia têxtil” no lixão clandestino do deserto do Atacama-Chile, quem ama moda talvez esteja confuso sobre como agir diante de situações tão complexas e questionando o futuro da moda nessa transição pandêmica.
Há esperanças de transformá-la numa indústria limpa e responsável? Não há respostas concretas, mas compromissos e pactos por si só não resolvem os problemas sem ações efetivas: o fato é que a moda, mesmo movimentando a economia, pode ser tóxica, literalmente, como no exemplo chileno, com toneladas e mais toneladas de roupas enterradas ou expostas a céu aberto, liberando poluentes no ar e nos corpos d’água subterrâneos típicos do ecossistema do deserto. A moda que nos seduz nas passarelas pode, sim, impactar tanto quanto pneus ou plásticos descartados incorretamente no meio ambiente. E este não é um papo “ecochato” ou “biodesagradável”: é a realidade.
A tecnologia tem sido importante aliada contra os impactos ambientais da indústria da moda, que está entre as três mais poluentes do mundo, sem mencionar as questões sociais envolvendo exploração e trabalho escravo, já amplamente noticiados. No que tange ao desenvolvimento de novas matérias-primas, como o chamado biocouro*, já existem no mercado produtos à base de cogumelo, cacto ou abacaxi, como substitutos ao couro animal. Contudo, sua comercialização avança lentamente pois depende de escala e, por enquanto, os preços não são tão convidativos, mas trazem uma luz no fim do túnel em termos de alternativas de produção e consumo mais sustentáveis.
Resistentes e apropriados para a produção de bolsas e calçados, os biomateriais produzem menos impactos que a versão originária da pecuária. A estreia das bolsas à base de micélio, na última coleção de Stella McCartney, é prova disso. O material, extraído diretamente de fungos para substituir a pele animal, é fruto de pesquisa, tecnologia e parceria com startups. A designer, sempre na vanguarda por processos e produtos mais sustentáveis, apresentou o resultado de suas pesquisas na recente exposição Future of Fashion, por ocasião da COP-26, em Glasgow.
Quase simultaneamente, a empresa suíça HeiQ divulgou um produto que promete revolucionar a indústria, diminuindo a tradicional dependência das fibras sintéticas e, ao mesmo tempo, promovendo a circularidade, já que as mesmas podem ser recicladas indefinidamente. O AeoniQ, fio originário da celulose, é produzido a partir de algas e bactérias como alternativa ao náilon e ao poliéster. Como biopolímeros de terceira geração, nada mais são do que compostos químicos produzidos a partir da ação de seres vivos. Além disso, esse processo utiliza 99% menos água que as fibras sintéticas e pode ser reciclado repetidamente sem perder a qualidade, havendo produtos comerciais prontos para serem apresentados já no primeiro semestre de 2022.
Grande parte dos impactos da indústria têxtil se deve às fibras sintéticas que necessitam de beneficiamentos e quantidades enormes de água para serem produzidas. Além disso, o náilon e o poliéster podem levar séculos para se decompor no meio ambiente e sua reciclagem é extremamente complexa, prejudicando diferentes ecossistemas e colocando nosso futuro em risco. Por isso a necessidade de inovar através da pesquisa e busca constante de novas alternativas pensadas para promover a sustentabilidade com o apoio da tecnologia. Mas nada acontecerá enquanto não revermos nossos comportamentos e padrões de consumo.
*Esclarecendo: o couro, sendo a pele de um animal que passou por processos de tratamento com químicos, diz respeito apenas a materiais provenientes dessa origem. Assim, expressões como “couro sintético”, “bio couro” ou “couro vegetal” não se encaixam na definição, apesar de serem similares. Ou é couro, ou não é. Apesar de ser comumente utilizada de forma incorreta, a palavra couro está protegida por lei (Lei do Couro – Lei nº 4.888), proibindo que o termo seja usado em produtos que não sejam obtidos de origem animal.
Madeleine Müller, Stylist há 25 anos e produtora de moda. Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade Fernando Pessoa(UFP-Portugal); Pós-Graduada em Moda, Consumo e Comunicação (PUC-RS) e graduada em Direito (PUC-RS); Professora no Design de Moda da ESPM-POA; autora do livro “Admirável Moda Sustentável: vestindo um mundo novo”; ativista do movimento Fashion Revolution. Acredita numa moda responsável e ética, regenerativa de sistemas e agente de transformação social. Contato: madeleine.muller@gmail.com madi_muller