Capa - Hugo França

HUGO E O CHAMADO DA FLORESTA

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Por Criz Azevedo

A busca por um estilo de vida mais próximo da natureza, e longe do cotidiano urbano, fez o designer gaúcho Hugo França (Porto Alegre, 1954) fincar bases em Trancoso no litoral sul da Bahia ainda na juventude.

      A exuberância e a generosidade da Mata Atlântica foram imprescindíveis no seu propósito profissional e pessoal em uma época que a expressão “sustentabilidade” ainda não acendia holofotes contínuos e potentes na mídia como vemos atualmente, embora já fossem necessários.

      E a madeira, matéria prima de suas ideias, ganhou o mundo. São mais de 4 mil peças, sendo que cerca de 1.000 delas fazem parte de acervos particulares, galerias, espaços públicos e importantes museus de arte em outros continentes. Apenas em Inhotim, em Brumadinho - MG, são mais de 130 obras em grandes dimensões compondo a geografia do parque. Suas criações são conhecidas por “esculturas mobiliárias”, muitas delas pesando toneladas, trazendo o traço marcante de seu criador com suas formas orgânicas.

Artista e designer Hugo França e a escultura Awapé / Foto: Tomás Vianna

      Inspiração, lar, ateliê, fonte, a floresta de Hugo em Trancoso hoje abriga, também, um dos sonhos do designer: uma galeria de arte em um espaço que tem como proposta ser um hub de criação recebendo outros artistas.

      Para chegar até aqui, vale conhecer um pouco sobre a sua relação com este bioma em uma entrevista concedida especialmente para a revista Onne&Only.

Banco Nuporanga da sua coleção / Foto: Tomás Vianna

Conte sobre suas primeiras pegadas no sul da Bahia e a razão de escolher essa região:

Finalizei a graduação em Engenharia de Produção na PUCRS, em 1979, e fiz um pit stop em São Paulo. Tinha como projeto pessoal buscar um lugar com qualidade de vida para morar no futuro, e o futuro aconteceu muito rápido. Já conhecia o Nordeste, mas não o sul do Bahia. Em 1981, optei por Trancoso. Não havia energia elétrica, tudo era muito rústico. Meus primeiros três anos foram direcionados para a pescaria. E graças a essa natureza, posso dizer que a Mata Atlântica no meu quintal foi a minha grande universidade.

Vindo de uma situação completamente urbana, fui me adaptando à cultura. Vivíamos de forma isolada. Tudo era novo, a alimentação, o modo de vida, o que exigiu uma grande força de vontade.

Aprendi sobre este bioma e o quanto é absurda a maneira como o tratamos. Quando cheguei, era o final do desmatamento predatório para comercialização de madeira. Assisti a essa situação, e foi impactante. Tinha a consciência teórica do que era um crime ambiental, mas ainda não tinha convivido com a ação de um crime assim. A partir desse momento, comecei a olhar a floresta tropical numa outra perspectiva. De maneira um pouco intuitiva, fui desenvolvendo meu conceito de trabalho, que mostra a madeira e a árvore em um formato diferente e mais sustentável.

Banco Moiara, fotografado longitudinalmente / Foto: Tomás Vianna

Como iniciou na arte de esculpir madeira?

Comecei reaproveitando canoas que não eram mais usadas pelos pescadores, convivia com índios pataxós que detinham o conhecimento sobre esse material. Fui garimpando essas peças e adaptando para mobiliário. Comecei a pensar esse conceito no início dos anos 1990 e a produzir objetos para a minha casa. Das canoas, entalhei pias entre outros itens.

Quando entrei em contato com as primeiras informações sobre a árvore pequi-vinagreiro, entendi que estava lidando com uma matéria prima única. Pequi não atende à marcenaria tradicional, mas serve para fazer tábua, tem a fibra trançada, tem oleosidade e umidade diferenciadas. Aprendi a técnica para aproveitamento dela com os pataxós e fui buscar o meu jeito de trabalhá-la. Ela não é considerada madeira de lei, mas tem uma força inigualável. Descobri que não queima e é a única que sobra das queimadas.

Resolvi pesquisar, pois havia quase nada de literatura sobre o tema. Ela tem a maior longevidade da floresta tropical, podendo viver em torno de 1.200 anos, sendo que a média de vida de uma madeira de lei é de 400 a 800 anos no hemisfério sul. Outra característica é a reposição desta árvore ser muito difícil. A semente só brota depois que passa pelo estômago da paca. Essa semente entra em contato com enzimas do estômago do animal, e depois da defecação a semente está pronta para brotar. É complicado fazer reposição dessa árvore que leva 200 anos para chegar à fase adulta.

Galeria de Arte em Trancoso junto à Mata Atlântica inaugurada em 2021 / Foto: Divulgação

Quais os desafios para encontrar o material bruto?

Difícil, pois são árvores em extinção, ressaltando que trabalho com árvores tombadas pela natureza ou que restam de queimadas. Além do pequi, uso a braúna, também conhecida como pau ferro. É a madeira mais dura do nosso bioma, usada para dormentes de trilho de trem e mobiliário. Para mobiliário público, uso qualquer tipo de madeira, sendo que cada uma atende a determinadas funções.

Importante destacar que 50% do material lenhoso é CO2 (dióxido de carbono). Quando você deixa madeira se decompor naturalmente, ou quando a queima, o que você está fazendo é devolvendo o CO2 que a árvore transformou em madeira.

Chaise Abauazi ambientada no jardim / Foto: Divulgação

Então, o melhor para a madeira é você transformá-la em alguma coisa. Pois quando a transforma em um objeto, você consegue aprisionar o CO2 que árvore recolheu durante toda a vida. Vejo muita desinformação em relação ao aproveitamento da madeira e ao resíduo florestal. Uma madeira que está enterrada, está largando CO2. Ao se decompor, o CO2 está indo para a natureza, e os outros 50%, que é material orgânico, vão para a terra. Quando você decompõe uma madeira, você tem que fazer uma decomposição controlada, pois daí, sim, você aprisiona o CO2 e o material orgânico. Muita gente acha que apenas jogar ao relento a madeira é bom, mas não é.

Vale destacar que uma floresta que você cuida pode se recompor em 30 anos. No entanto, se essa mesma floresta não receber uma atenção, ela pode levar 100 anos para se recuperar. A floresta pode sim ser mexida e explorada sem ser depredada e aniquilada.

Banco Airumã, funcional e escultórico como grande parte de suas obras / Foto: Tomás Vianna

Você costuma dar funcionalidade à peça, além da estética. Sempre foi assim?

Comecei a dando ressignificação às peças, trazendo funcionalidade ao objeto, mas hoje as vejo com a força de uma escultura. Produzo 50% esculturas não funcionais, 50% esculturas funcionais. Entrei no mercado pela porta do design, pois no início produzia peças exclusivamente com função. Percebi, então, que a questão escultórica dentro do conceito do meu trabalho é muito mais importante que do que a funcionalidade. Isso foi uma das coisas que custou muito para eu mostrar para o mercado de arte e design, pois essa fronteira é bastante preconceituosa, pois nem todas as pessoas aceitam um objeto funcional ter status de obra de arte.

A arte coloca uma espécie de vidro entre o espectador e a obra. O design foi pensando para um uso específico. A obra de arte foi feita para admirar e pensar. Quando essas duas coisas se fundem, elas deixam o público em dúvida. Uma das perguntas que mais escuto das pessoas é se podem tocar nas peças. Eventualmente faço obras que as crianças gostam de interagir. Essa relação quebra um paradigma e cria um outro tipo de relação da obra de arte com o espectador, e eu acho muito interessante esse tipo de situação.

Mesa Sapucaia e suas formas orgânicas / Foto: Tomás Vianna

A educação ambiental é pauta imprescindível para a sociedade. Como você atua neste sentido?

Acredito ser a parte mais importante do meu ofício, e tenho um prazer muito grande em fazer um trabalho educativo. Uso meu trabalho como ferramenta no contexto da educação ambiental, principalmente para as próximas gerações, pois a nossa geração está muito mal-educada e está difícil o retorno. Fiz oficinas para crianças a partir de 4 anos e até para velhinhos em asilos, realizei em faculdades, cursos de pós-graduação no Brasil e em outros países.

Trabalho, também, há 15 anos, com aproveitamento de árvores caídas. Temos um ateliê móvel composto por um caminhão com todo ferramental, e transformamos em mobiliário. Em cidades do Brasil, Canadá, Bolívia, por exemplo, já levamos esse projeto. E o ferramental tem algo de inusitado. Ressignificamos a motosserra, símbolo do desmatamento, que é usada para esculpir, aproveitando ao máximo o resíduo lenhoso. A lixadeira é para dar acabamento.

Gostaria de ressaltar a importância de ter mais bom senso no aproveitamento do resíduo lenhoso decorrente da marcenaria. É um crime essa falta de cuidado, percebo resíduos lenhosos sendo jogados fora. Observo até em países adiantados ambientalmente, e eu luto com essa história, pois a minha luta é sobre se ater para isso, e pensar em ações para melhor aproveitar esses resíduos, ter mais consciência.

Banco Guabiruva e Mesa Taupé, todos em madeira Pequi / Foto: Divulgação

Como foi criar na pandemia?

Em março de 2020, saí de São Paulo, de mala e cuia, para fugir. Me senti como se estivesse num filme de ficção norte americano botando toda a família dentro do carro com cachorro e passarinho, escapando de uma situação que não sabia direito qual era. Ficamos dois meses nos adaptando, tentando mudar o formato de trabalho que tínhamos. Todo mundo começou a trabalhar em casa, e eu passei a me dedicar ao ateliê. [Hugo mantém, há alguns anos um show room em São Paulo e um ateliê em Louveira (SP), além do ateliê em Trancoso]

Descobri que eu podia morar aqui com uma qualidade de vida muito melhor do que eu tinha em São Paulo. Trabalhei muito. Consegui vender muito bem para o mercado interno e externo e viabilizar um grande projeto que é a realização de um sonho, a galeria de arte inaugurada em julho de 2021.

Escultura Jupi em primeiro plano, junto a demais peças de Hugo França / Foto: Divulgação

Fale mais sobre este novo espaço em Trancoso

      Estamos numa área de 50 mil m², em que 20 mil deles são de Mata Atlântica. A galeria tem cerca de 10 metros de altura e quatro grandes aberturas, mais entradas de luz na parte superior, viabilizando instalações verticais e horizontais, e tem o intuito de ser um polo de arte contemporânea, design e fotografia. Ela fica junto ao ateliê e galpões de produção.

      Minha ideia é trazer artistas residentes para criar e realizar exposições aqui. Também desejo que seja um espaço multicultural, tenho uma boa biblioteca e pretendo criar um museu.

      Inaugurei a galeria com obras minhas, mas a proposta é também trazer exposições temporárias de outros artistas. E, em dezembro, temos Regina Silveira, artista gaúcha, com uma instalação que só tinha sido apresentada na Alemanha, além de obras gráficas dela.

Para conhecer um pouco mais o trabalho de Hugo França, acesse:

www.hugofranca.com.br

@atelierhugofranca

 

Agradecimentos a Cezar Prestes, amigo do artista, pela ponte.