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A POESIA DE BEZ BATTI ETERNIZADA NO BASALTO

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Por Criz Azevedo

Uma rua de terra, com suave curva, contornada por grandes árvores e boas sombras, leva ao ateliê e residência do escultor João Bez Batti, em Bento Gonçalves, na serra gaúcha. Nesse bucólico trajeto, onde ouvimos uma profusão de aves em colóquio, se avista grandes pedras brutas sobrepostas, insinuando que ali habita o artista. E para minha surpresa, João estava em frente ao portão de ferro, aguardando pela nossa entrevista, como se o vento o tivesse lhe soprado que estava prestes a chegar. Tínhamos pré-agendado nosso bate-papo, mas sem eu dar um horário certo para o encontro. De longe, expressou receptividade, como aquelas pessoas que dizem apenas com o olhar: seja muito bem-vinda. E o dia estava acolhedor. O sol generoso participou da nossa conversa, invadindo as aberturas do ateliê e galeria no início da tarde, trazendo muita iluminação natural. E que luz! Cabeças, touros, pombos, uma mescla de criações esculpidas em pedras de diferentes séries da carreira de Bez Batti estavam dispostos e organizados, na companhia de um dos oito felinos adotados driblando nossas passadas pela casa.

Foto: Valdir Ben

    Natural de Venâncio Aires (RS), nos seus quase 82 anos, a serem completados em novembro de 2022, mais de seis décadas são dedicadas à arte. A trajetória se iniciou em Porto Alegre, mas as memórias da infância, quando morou na região de Volta do Freitas, em General Câmara, permanecem até hoje. Como se cada detalhe daquela época estivesse impregnado numa reminiscência que o acalenta.

    - Sou capaz de esquecer com quem falei no dia anterior, mas lembro de tudo daquela primeira década de vida. Açudes, rio, barcos. Os filhos dos agregados que trabalhavam com meu pai e produziam miniaturas de ferramentas agrícolas em madeira, às quais era fascinado e tentava imitar. Recordo das ilustrações de barcos que um vizinho costumava criar e eu voltava pra casa querendo copiar. Também tenho muito claro até hoje, quando eu tinha 4 anos de idade, minha mãe desenhando um pato. Aquilo foi tão impactante pra mim. Hoje, olhando para o passado, percebo que fui perseguido pelo desenho, e numa região com zero referências em arte. Certa vez, meu pai veio de Porto Alegre e trouxe cinco livros ilustrados. Aquilo me provocou uma emoção estética, assim como foi o pato da minha mãe. Se tu nunca tiveste contato com uma obra de arte, tu para, olha e sente essa emoção estética. Essa sensação pode acontecer diante de um desenho, uma pintura, uma escultura.

Foto: Valdir Ben

E a natureza é responsável por isso. O rio Taquari e os seixos são testemunhas dos seus momentos contemplativos, pois Bez Batti preferia ficar só. Quem lhe confortava era o vento, as pedras, os pássaros, as árvores, as águas, os aromas. Companheiros, estes, imprescindíveis até hoje e que de alguma maneira fazem parte do seu processo criativo, além do apoio da família que construiu ao longo da vida, ao lado da esposa Maria Schirley, o filho Diego, a filha Melissa, hoje morando em São Paulo, e os netos.

    - Se escuto o canto de um pássaro que não conheço, dou um jeito de averiguar até tentar descobrir que tipo de ave é. A natureza é tão importante para mim, que queria morar em um lugar mais afastado ainda. Certa vez, vi o poeta Manoel de Barros numa entrevista dizer que ‘nasceu fertilizado pela natureza’. Como gostaria de ter sido seu vizinho e poder trocar ideias. Estou sempre plantando árvores, principalmente frutíferas, tenho uma variedade enorme, e já abracei muitas na vida. Quando não estou bem de cabeça, a única coisa que melhora meu humor é visitar o rio. Não posso ficar longe dele por muito tempo. Lá colho seixos. Acumulo desde guri. Tenho uma coleção enorme. Isso é a minha volta à infância. É algo que tenho necessidade de fazer. Ainda quero escrever um livro sobre as pedras da infância.

Foto: Valdir Ben

Ao conversar com este artista de fala pausada que aprecia a calma e a beleza dos hábitos simples, você se enriquece de reflexões sobre a vida e frases pontuais de autores que ele admira trazidas para o bate-papo. Citando Rainer Rilke, Marguerite Yourcenar, entre outros, tal característica revela uma parte dos seus hábitos bem rotineiros, os livros. Muitas das horas, quando não está trabalhando, são reservadas para a leitura seja ela poesia, ensaio, arte, biografia, como os cerca de 30 títulos sobre Pablo Picasso, pintor espanhol o qual é fã e inspiração para a sua mais recente série de esculturas. Lançada em 2021, “as Picassianas” resultaram em exposições na serra gaúcha, bem como o livro “Dialogando com Picasso”, sexto livro sobre suas obras, assinado por Armindo Trevisan e Jorge Adelar Finatto, com fotos de Valdir Ben, Daniel Herrera e Dandi Marchetti da Rosa.

- Como artista, Picasso é impressionante, embora não fosse uma pessoa fácil. Mas, pra mim, o maior artista foi [Antoni] Gaudí. Comprei um livro sobre ele. Dá vontade de chorar de emoção. Ele foi um homem religioso, e se eu fosse viajar novamente para a Europa, embora não tenha mais disposição, gostaria de conhecer a Espanha. Eu sou uma pessoa espiritualizada, desde criança oro diariamente para São Francisco de Assis e Nossa Senhora das Graças. Teve um período da carreira que trabalhei muito com madeira, fazendo elementos religiosos. Hoje penso numa possível ideia de esculpir um Cristo em pedra.

Foto: Valdir Ben

O sobrenome Bez Batti é como aquelas palavras que condicionam destinos. Ao conversar sobre as origens italianas da família pelo lado paterno, João foi desbravar a história da família em uma viagem à Itália quando recebeu uma homenagem.

 - Meu pai nasceu numa aldeia nas Dolomitas. Todo mundo era Bez acrescido de um sobrenome que estaria ligado à profissão. Meu avô recebeu o Batti, era proprietário de uma pedreira, e Batti significa cortar pedra. Tenho muito orgulho disso. Minha vó era de outra cidade, com sobrenome Mazzuco, que vem a ser uma dinastia de cortadores de pedra. Que coisa louca né?

Argentina, Peru, Alemanha, Itália, são alguns dos países com criações de Bez Batti, assim como ambientes corporativos e residenciais no Brasil, em diversos estados, sendo considerado um dos maiores escultores do país em atividade. Sua rotina é de segunda a segunda, contando com o suporte de um auxiliar para operação de equipamento que exige muita perícia, o qual é realizado em um galpão mais afastado em razão da produção de resíduos em uma das fases do processo de criação. E o basalto, uma das pedras mais duras que existe na natureza, se impõe, mas é este desafio que faz Bez Batti adorar este material, desde a seleção de qual usar, passando pelo corte e depois a escultura, em um processo operacional lento.

Foto: Valdir Ben
Foto: Valdir Ben

Antes de cada execução e materialização da peça, o desenho é o ponto de partida sempre. Após a fase do desenho, entra em ação a argila, cumprindo o papel de maquete, para depois seguir para a pedra a ser esculpida e polida. Parte dessas criações são peças de algumas toneladas encomendadas para projetos em parceria com designers e arquitetos, como é o caso de “Capitel dos Ventos” para um condomínio em Porto Alegre, assinado pelo escritório Arthur Casas, o qual a Onne&Only deu destaque na edição nº15, o Luciana 250. E o basalto é a sua preferida, tendo já trabalhado com granito e mármore.

- É a pedra mais bonita que existe. Além de ter em abundância em nosso solo. Ela dura mais do que o metal. Os egípcios a usavam. O código de Hamurábi foi esculpido nela. A Pedra de Rosetta que o exército de Napoleão encontrou e que foi a chave para decifrar hieroglifos é em basalto negro. Então, isso que estou fazendo é uma coisa eterna. Um mineral desses se criou há mais de 120 milhões de anos. Ele ainda está vivo. E eu vou dando nome às pedras, baseado nas cores que encontro, como basalto sanguíneo, multicolor, verde oliva. À mais recente descoberta, dei o nome de basalto cacau, pela cor que parece um chocolate. Quando olho a pedra, já sei o que quero dela, mas também preciso testar e ouvir seu som para saber se ela atenderá ao que pretendo. Há materiais que podem trazer fissuras internas quando testamos antes.

Foto: Daniel Herrera
Foto: Valdir Ben
Foto: Sergio Guerini
Foto: Valdir Ben

Uma pessoa importante no início dessa caminhada e que o fez acreditar que poderia viver de arte foi o gravurista, pintor e escultor Vasco Prado, com quem teve aulas de desenho, bem como a artista Zorávia Bettiol, de 1959 a 1964.

- O desenho é como um amansa burro, tudo parte dele, é pra ele que se recorre. Fiz aulas de desenho no ateliê de Vasco e Zorávia quando tinha 18 anos, trabalhava nos Correios à noite. Mas na escultura sou autodidata. A segurança em me dedicar exclusivamente à arte aconteceu após a primeira exposição no ateliê desses mestres em 1962. Pena que comecei tarde, perdi metade do caminho. Poderia estar em outro nível da arte.

Bez Batti tem por hábito dormir muito pouco, cerca de quatro horas por noite, mas consegue ter sonhos apontando formatos de pedras e recebe muitas das respostas que precisa por meio da intuição e da natureza. Então, não conseguiria morar em outro lugar do mundo que não permitisse viver seu instinto.

 

- Não preciso escutar a previsão do tempo pelo rádio para saber como será o clima. Tantos anos junto a árvores e pequenos animais me ensinaram muitas coisas. O vento me diz. Percebo os sinais. Tem um pássaro que só canta em véspera de chuva. Tem um sapo que só entra no cocho da água antes da chuva. O vento que começa do leste e passa pelo norte indica que vem água.

Sei que não vou concretizar todas as ideias que tenho em mente. Mas uma vontade gostaria de realizar: uma praça em basalto com bancos e equipamentos para a comunidade ocupar. No entanto, não se vê mais encomendas públicas como havia antigamente. E, aos poucos, nossa profissão que surgiu dos cemitérios com seus bustos e estátuas vai desaparecendo. Quando eu morrer quero que escrevam na minha lápide O HOMEM QUE AMOU AS PEDRAS.