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AMANHECERES DE ZORAVIA BETTIOL

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ARTISTA VISUAL COMPLETA 87 ANOS TRABALHANDO ATIVAMENTE E DESENVOLVENDO INICIATIVAS EM PROL DA ENTIDADE QUE LEVA SEU NOME

A zona sul de Porto Alegre é onde se encontra o espaço de moradia, inspiração e trabalho da artista visual Zoravia Bettiol. Nestas mais de seis décadas dedicadas à arte, vários de seus ateliês tiveram endereço nesta região da capital gaúcha, que é quase uma outra cidade dentro de Porto Alegre, com a exuberância do verde predominando sobre o concreto. São ruas arborizadas, casas com pátios generosos, muitas flores, elementos, estes, presentes em algumas das suas famosas séries nos mais diversos suportes que já trabalhou.

Ao adentrar o ateliê e galeria, na rua Paradiso Biacchi, 109, bairro Ipanema, o visitante é recebido por uma mulher marcante que veste cores muito vivas e ornamentos autorais. Uma paleta alegre que combina com o sorriso receptivo e a personalidade de uma artista que aos 87 anos ainda produz, pois ama mergulhar em projetos novos, haja vista os esboços que foram apresentados durante a entrevista para um futuro livro por encomenda. Versátil, suas criações estão presentes em desenhos, pinturas, gravuras, arte têxtil, wearable art, performances, instalações, cenografias, murais, ilustrações para livros.

Filha do meio de Emma e Sigefrido, irmã de Dilmer Einar e Arrenius Igor, Zoravia Augusta Bettiol nasceu em Porto Alegre, em dezembro de 1935. Os nomes tão diferentes dos filhos dão uma ideia da faceta culturalmente rica da família. O nome Zoravia é de origem eslava que tem em sua raiz duas expressões, zora (amanhecer) e via (caminho), caminho do amanhecer. Por ser quase raro, rendeu um episódio engraçado para a artista quando passou uma temporada na Polônia, em 1968, para estudar. “Recebi uma carta bem-humorada de um amigo do Brasil com um recorte de jornal sobre uma tal cigana Zoravia que tinha sido presa por furto numa cidade. Na carta, o amigo dizia que tinha descoberto meu verdadeiro paradeiro”, diverte-se.

Família Bettiol: Sigefrido, Dilmer, Zoravia, Arrenius e Emma (1941)

Brincadeiras à parte, o cotidiano dos Bettiol sempre envolveu estímulo à criatividade e ao debate intelectual. Com 12 anos de idade, Zoravia já emitia suas opiniões em reuniões de família, e era respeitada, mas não via espaço para conversas do mesmo nível na casa dos amiguinhos. Tal desenvoltura desde muito cedo é resultado do incentivo do pai, advogado, professor de Português, Latim, História, Geografia, que foi vice-reitor do IPA quando este se chamava Porto Alegre College. “Um homem de cultura humanista, que gostava de conversar sobre respeito ao meio ambiente e justiça social, com ideias progressistas, inclusive na educação dos filhos, mas que enfatizava a importância da liberdade com responsabilidade e cada um de nós ter uma profissão. Minha irmã é uma das primeiras mulheres engenheiras sanitaristas. Meu irmão é engenheiro agrônomo”. Contudo, as ideias de Sigefrido cobraram seu preço e ele seria exonerado de escolas onde lecionava. Perseguido pelo Estado Novo pelo seu posicionamento político, a família mudou-se de cidade algumas vezes, morando em Bento Gonçalves, Erechim, São Paulo e retornando a Porto Alegre, onde Zoravia passou a estudar no Instituto de Educação aos 11 anos de idade.

A arte já fazia parte da vida da jovem que dedicava boas horas aos lápis, papeis e pinceis como passatempo. Naturalmente, decidiu-se por aprofundar conhecimentos e técnicas no Instituto de Belas Artes, onde se graduou em pintura, em 1955. Foi aluna de Ado Malagoli (1906-1994), João Fahrion (1898-1970). Começou a participar de exposições coletivas com colegas de aula, mas considerava o curso insuficiente, com poucos professores bons. Exigente consigo mesma e com o ensino, no ano de 1956, ingressou no ateliê do escultor Vasco Prado (1914-1998). Aprendeu desenho, linoleogravura e xilogravura.  Nesta época já iniciava suas incursões na tapeçaria.

 

Anos depois, estudou arte têxtil na Polônia, joalheria em São Paulo, design de superfície em São Francisco, na Califórnia. Assim foi aperfeiçoando habilidades. Foi arte-educadora, ministrando aulas no Brasil e no exterior: “Acredito no ensino sistematizado. Tens que saber as regras direito para depois subvertê-las. E até deve subvertê-las. Sempre busquei ir a fundo nas práticas. Hoje vejo alunos com pressa. Fazem um curso, acham que estão prontos e querem logo expor. É preciso ter consistência até visualizar que ali tem qualidade para mostrar ao público. Além disso, não continuam o aprendizado que é algo que nunca deve terminar. No entanto, não podemos esquecer daqueles que são autodidatas e geniais. A regra geral não exclui, há exceções que são fabulosas”, sublinha.

Além dos prêmios conquistados ao longo da carreira, ao currículo de exposições somam-se mais de 150 mostras individuais e mais de 350 coletivas, em cidades no Brasil e de países como Estados Unidos, França, Polônia, Suíça, Portugal, Itália, Espanha, Suécia, Argentina, Uruguai, República Tcheca. Dos anos 1980 a 1982, foi presidente da Associação Chico Lisboa, entidade que congrega artistas brasileiros, sendo uma das mais antigas ainda em atividade. Na época que assumiu, a associação, que estava desativada fazia 15 anos, ganhou novo fôlego com a liderança desta destemida Bettiol.

É uma das precursoras da nova tapeçaria no Rio Grande do Sul, com criações bidimensionais e tridimensionais, e peças que se apoiam no solo em grandes dimensões. “Uso a arte têxtil, nessas tapeçarias que, às vezes, são em série, e também em joias, ornatos de cabeça, elementos de figurino para teatro, que até podem ser usados para Carnaval. Nunca consigo fazer uma obra só, sempre desenvolvo séries em todas as técnicas que estou trabalhando no momento”, conta.

Do convívio com Vasco, veio um casamento de 28 anos e três filhos, Fernando, Eleonora e Eduardo, e uma família que cresce, com os netos Valentina, Aramis e Heitor. Um dos prazeres de Zoravia é fazer poéticas para o neto mais jovem que mora longe de Porto Alegre e tem pouco mais de 2 anos de idade, por meio de textos e vídeos para quando ele puder compreender as mensagens. Durante uma parte de sua jornada, após separar-se de Vasco, em 1985, morou sete anos em São Paulo e oito em São Francisco na Califórnia. “Viajei antes, por três meses, para escolher a cidade e o país que gostaria de viver por um período. Percorri Barcelona, Paris, Milão. Visitei São Francisco e me apaixonei pela cidade. Lá estudei e trabalhei incansavelmente. Voltei ao Brasil no ano 2000, mas sempre vinha rever a família neste período longe”.

Sobre processo criativo, destaca que não há um método comum a todas as obras que já executou. Tudo vai depender do tema. “Ilustração para livros, por exemplo, leio muitas vezes a narrativa. Paro tudo, faço outras coisas, e algum momento vem a ideia e isso acontece geralmente quando estou sozinha, fecho os olhos e visualizo imagens. É neste estado de leveza que percebo que a ideia está madura e transponho para o papel em croquis. Depois vem a composição. Se ela for ruim, vai para o lixo. Sempre digo que tenho dois aliados, o meu inconsciente e a lixeira. O que eu guardo pode até ser que não use para aquele projeto. Isso é interessante, às vezes, não sei por que guardo, mas sei que algum dia será útil”, conta.Entre as criações que adora fazer estão as encomendas, como o livro de contos que está ilustrando, num processo ainda em desenvolvimento, aplicando a arte da pintura que posteriormente é digitalizada.

 Outro trabalho, este disponível à venda, lançado em 2021, é o livro “Divina Rima - Um diálogo com a Divina Comédia, de Dante Alighieri”, com poemas em terza rima do amigo Gilberto Schwartsmann e ilustrações de Zoravia a partir de gravuras às quais também podem ser adquiridos esses originais. As vendas desta criação literária revertem para as obras de restauração da Casa dos Leões, na Rua da Praia, 507, no Centro Histórico, onde será a futura sede do Instituto Zoravia Bettiol. A entidade tem como propósito reunir o acervo da artista, ser um espaço de promoção da arte e da cultura em Porto Alegre, com ambientes para cursos, palestras, exposições.

O prédio é uma construção histórica do final do século XIX doada pelo município, mas que requer uma série de reparos estruturais, antes de estar apta para receber acabamentos e projeto de interiores. O projeto está pronto e atualmente está em fase de captação de recursos. A previsão para ser entregue ao público ainda é indefinida. Enquanto isso, ações relacionadas à cultura do Instituto acontecem em espaços como o próprio ateliê de Zoravia, que recebeu recentemente uma exposição de fotografias.

VISITAS AO ATELIÊ

Para quem deseja visitar o ateliê, bem como adquirir obras de séries recentes e de outros anos, além de livros da artista, é necessário agendar pelo e-mail galeria@zoraviabettiol.com.br.

@institutozoraviabettiol