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ARAQUÉM, O PÁSSARO QUE NOS ACORDA

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Por Criz Azevedo

 

“SOU UM POETA INTEGRAL, E UM POETA NÃO MEDE ESFORÇOS EM ESPALHAR SEU CANTO”, DIZ ARAQUÉM ALCÂNTARA, UM DOS PRINCIPAIS PRECURSORES DA FOTOGRAFIA DE NATUREZA NO BRASIL, QUE COMPLETOU 50 ANOS DE HISTÓRIAS VISUAIS, REVELANDO AS RIQUEZAS DOS BIOMAS DO PAÍS.

Natural de Florianópolis (1951), aos seis anos de idade mudou-se com a família para Santos (SP). Aos 10, um seminário carmelita em Itu (SP) foi seu lar até os 13 anos. Lugar, este, importante em sua formação cultural, tornando-o um leitor dedicado que adora citar trechos de seus autores preferidos. Na fase adulta, escolheu o jornalismo como graduação, mas foi um filme japonês que o inspirou a experimentar narrativas visuais.

O nome Araquém tem origem Tupi. Significa “pássaro que dorme”, e é personagem do romance “Iracema”, de José de Alencar, que influenciou o pai Manoel a batizar seu primogênito.

Durante uma expedição ao Pico da Neblina, em um de seus momentos de epifania e maravilhamento, escreveu: “Aqui, no ponto mais alto do Brasil, consagro minha vida a criar e a repartir belezas”. E assim estava feito, e assim somos brindados com seu olhar. Bem antes dessa determinação lavrada em pedra e documentada em livro, já percorria rios, matas, fazendas, parques nacionais.

Não apenas fauna e flora são captadas com plenitude pelas lentes de Araquém. Ele é um observador que vê beleza nas pessoas simples e com poucos recursos, mas grandiosas nos valores morais que carregam. Seja na inocência das crianças, nas mãos calejadas dos trabalhadores, nas expressões marcantes de quem viveu muito, e longe demais das capitais. São imagens que comunicam força, personalidade, caráter, empatia e dizem muito sobre esses brasileiros da floresta, dos pantanais, da Mata Atlântica, do cerrado, da caatinga e tantas regiões que fazem esse caldeirão cultural e natural. Para isso, é necessário ter tempo para entender o tempo do outro, respeitar esse momento de forma que se transmita confiança e estabeleça uma cumplicidade com seus fotografados. Como bem pontuou Araquém em nossa conversa: “lembre-se da frase de Saramago, Criz: Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”.

Degustando seu vinho durante nossa entrevista, ressaltou a urgência da pauta Amazônia, região que visitou mais de 50 vezes. No currículo, 61 livros que impactam em imagens belíssimas de biomas e nativos deste país continental. Com destaque para “Terra Brasil”, até hoje o livro de fotografias mais vendido no país, são mais de 120 mil exemplares, além de prêmios conquistados. Não apenas as belezas estão eternizadas em brochuras que adornam mesas e bibliotecas. O descaso com o meio ambiente também está testemunhado como forma de denúncia. É o seu ativismo, ressaltando a importância do papel político do artista em nome da preservação dos ecossistemas.

Como foi o despertar para a fotografia?

Assisti ao filme ‘A Ilha Nua’, uma produção japonesa de 1960, durante um curso de história do cinema. Eu não tinha a menor ideia sobre quem era Kaneto Shindo, o diretor. E o filme passava no que se chamava Sessão Maldita. Pensei, opa, deve ser meio pornô ‘ilha nua’. Quando o assisti, pareceu que estava recebendo uma convocatória espiritual. Saí do cinema pensando naquelas imagens que mostram a rotina de uma família. De sol a sol, precisam subir uma montanha para plantar, colher, navegar ao continente em um pequeno bote, um trabalho árduo, mas que os mantém vivos. E aquelas travessias diárias! O filme foi uma epifania. Até então, eu não tinha relação alguma com a fotografia. No dia seguinte, quis fotografar, e uma amiga emprestou uma câmera. 

Por que a fotografia de natureza e seus habitantes?

Gosto dessa coisa da aventura. Percebi, anos depois, que vem do meu pai. Ele foi marinheiro e grumete. Sua vida, poderia ser referência para um personagem de Joseph Conrad. A alma viajante, acredito que herdei dele. Ele, pelo mar; eu, pela terra. Ser um fotógrafo andarilho não deixa de ser uma forma de navegar. Tem que atravessar aquela montanha? Então vamos nessa. Meu pai queria que eu fosse um sacerdote do candomblé. Preferi seguir outro tipo de sacerdócio que é registrar a beleza e o extermínio. Sou um cronista desse universo, dos biomas, dos povos. E você aprende muito com as pessoas desse Brasil.

 

A veia é peregrina, naveguei por quatro meses na Amazônia pelos parques nacionais da região. Por volta de 1980, me determinei a cumprir uma saga, quase uma odisseia: percorrer todos os parques nacionais do Brasil. Já estava claro para mim que eu tinha que unir todos os ecossistemas, embora não tivesse consciência exata da minha contribuição para uma identidade visual. Foi muito idealismo, e este idealismo foi o que me fez perseverar.

Como formar uma consciência ecológica?

O Brasil, na geopolítica mundial, contribui muito pouco e esqueceu o seu principal ativo, sua riqueza, sua Amazônia. Além disso, precisa se reconciliar com a natureza. Tive uma sacada intuitiva, em 1974, com 4 anos de fotografia. Estava clicando em Cubatão, e se falava da chuva ácida. Escrevi sobre isso na época. E a tal chuva afetou o nascimento de crianças que nasceram com problemas de má formação nos membros e sistema nervoso. Esse despertar para trazer verdades me acompanha, numa época que a palavra ecologia era pouco falada.

 A Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento e Meio Ambiente Humano, em 1972, em Estocolmo, foi um marco, bem na época do meu início profissional. Antes, o incentivo era para que os países pobres tinham que se desenvolver a qualquer custo. Esse processo só mudou com o surgimento da consciência ecológica.  Quando comecei a fotografar a Amazônia, ela não tinha mais do que 5% devastado. Hoje, estamos num turning point em que a floresta, em alguns lugares do desmatamento, não sequestra mais carbono, não produz mais. Por isso a urgência de replantar. Reflorestar. Talvez isso seja a nossa mais linda tarefa.

 

Gostaria, de antes de morrer, que isso estivesse implantado na alma brasileira: sermos protagonistas da proteção da floresta. Salvá-la. Tenho escrito sobre isso. Como diz João Moreira Salles no livro ‘Arrabalde: Em busca da Amazônia’: a sociedade brasileira sabe que a Amazônia é importante, mas não desenvolve um sentido de afeto. Os primeiros colonizadores e latifundiários diziam que ela não oferecia nada. Era considerada uma inimiga. A visão sobre a floresta era outra. Não se olhava como algo essencial. Euclides da Cunha, em ‘À Margem da História’, já sacava isso. Uma vez li que o Brasil li seria o berço de uma nova civilização numa profecia de Dom Bosco.

No livro ‘O inventor da Natureza’, de Alexander von Humboldt, bem como Le Corbusier também argumentava que a civilização um dia iria necessitar da floresta. Veja o exemplo da árvore sumaúma, a rainha da floresta, ela é tão grandiosa e generosa, que absorve água e distribui para seus vizinhos. Quando você sobe o Pico da Neblina, as bromélias são gigantes, algumas maiores do que eu. Amazônia é uma grande biblioteca.

E o que faz um fotógrafo ou artista? É isso que Darcy Ribeiro já dizia e João Moreira Salles nos convoca: unir a opinião pública. Sensibilizar o mundo. Levar artistas, cientistas, realizar intercâmbios. Estamos perdendo porque não a ocupamos. O Brasil só será uma nação se for protagonista da defesa da Amazônia. Nosso futuro é definido por esta floresta. 

O que você aprendeu com os brasileiros que encontrou nas expedições?

No sertão, por exemplo, eles falam ‘como eu sou feliz em morar aqui longe de vocês’. Estive com uma tribo de índios isolados, os Zoés, e o antropólogo falou ‘você vai achar interessante, hoje à noite, muitos da aldeia verão documentários que eu trouxe sobre a vida na cidade’. Em uma das cenas, apareceu um lixão. Eles murmuraram, ficaram muito surpresos, pois são um povo muito limpo. Os indígenas têm um sentido de limpeza e de saúde, que só é conspurcado em contato com o homem branco. Então eu noto esse sentimento de se sentir feliz, mesmo vivendo com poucos recursos. A felicidade é um sentimento. Você é recebido na casa desses brasileiros e eles te oferecem a cama deles para dormir, e nem sempre tem outro móvel confortável para descansar. Eles oferecem o melhor que possuem e se sentem ofendidos se tu não aceitares. Essa hospitalidade é o povo brasileiro.

Tenho histórias curiosas com esses filhos da terra. Certa vez, avistei luzes muito fortes na Jureia, que me remeteu a OVNIs, estava com a namorada e um amigo. Foi uma experiência incrível. Perguntei a um caiçara se ele presenciou a cena. Ele disse que eu teria sete anos de felicidade por ter visto o tucano de ouro, e que nos seus 70 anos de vida nunca tinha avistado. Seria uma espécie de portal. Perguntei o que seria essa felicidade, e ele respondeu: boa pesca, saúde, paz, nenhuma briga na família e palhas da guaricana não apodreceriam na cobertura da sua cabana. O povo brasileiro é cheio dessa magia.

Em alguma das suas experiências sentiu medo?

Estava fotografando jacus numa fazenda e senti um incômodo. De repente, vejo os jacus subindo nas árvores, passarinhos em revoada. Olho para trás e uma onça me mirando na mata. Quase não consegui respirar. Lembrei das aulas de latim, não pergunte o porquê, mas pensei em Ad majorem Dei gloriam [para a maior glória de Deus]. Fiquei de frente ao animal, abri lentamente os braços para parecer grande, sem olhar nos olhos dela, sem movimentos bruscos. Depois a fotografei fingindo que olhava pros lados, pois ela hipnotiza e não gosta de cheiro de humanos. Fui andando devagar, ela me seguiu. Estava se preparando para o ataque, baixou as orelhas, levantou uma corcova, mas saiu pelo sentido contrário sempre de olho em mim.

Depois ela passou molhada ao meu lado encarando. E foi embora. Quando encontrei meu grupo, contei sobre o episódio, e eles disseram que aquele latim ajudou a convocar os anjos rapidamente. Nos divertimos. ‘Tá vendo, se for em latim eles atendem rápido’. Vendi esta foto para a proprietária da fazenda. Ganhei dinheiro com a minha quase beira de morte. Acredito que os bichos são os olhos de Deus. Com o tempo, você vai entendendo nesses encontros que há uma ligação. E esta ligação me dá uma energia muito grande. Eu não posso ficar sem esse contato com a natureza.

Estava com um grupo numa canoa que se desgovernou, ela iria cair numa cachoeira. Eu tinha sacos de plástico para 100 quilos, coloquei equipamento, amarrei na perna. Conseguimos pular antes da queda d’água. Outra vez foi um avião monomotor. Pegamos uma tempestade, foi acionado o MEI DEI. No meio de um lavrado, fizemos pouso de emergência. Uma das asas quebrou. Demoramos um dia e meio para encontrar outro ser humano. E tem muito mais episódios.

Você é uma pessoa espiritualizada?

Eu entro em estado de meditação ao contemplar pássaros, árvores. Às vezes, eles chegam na minha varanda. Aprendi que, com o tempo, um fotógrafo que se hospeda na natureza desenvolve uma espécie de xamanismo. A fotografia ensina a importância da paciência e da contemplação.

Por ler muito sobre cultura dos povos e livros sagrados, e ter tido uma vida em que o mítico e o místico estiveram muito presentes, eu tenho uma relação de muito respeito por tudo que nem sempre é explicado. Eu penso em latim e digo ‘fiat voluntas tua’ [seja feita a tua vontade] quando entro em minhas expedições, mesclo meu anjo da guarda com meus orixás e peço: me protejam aí! Porque na mata, você é um intruso naquela sociedade.   

Sou filho de Oxóssi, orixá das matas, com Oxalá de frente, que é o sábio. Muitas pessoas quando me conhecem dizem ‘como você é calmo’. Ledo engano. Sou capricorniano pragmático, com ascendente em aquário. Estou sempre pronto para encarar projetos.

 

 

Pelas citações, creio que seja ávido por leitura

Estudei em um seminário carmelita em Itu. Tinha um amigo frei que era meu confessor. Com12 anos, me deu a chave da biblioteca dele. Eu amo ler até hoje. Ele tinha um capricho, todos os livros encapados para proteger. Tamanho o apreço por seu acervo. Lembro do cheiro. E este sentido do olfato também desenvolvi na mata. Já identifico se tem animal por perto. Além disso, gosto muito de escrever, antes de ser repórter fotográfico, comecei com textos no jornal. E nesse exercício de escrever, aprecio um bom vinho, que é um excelente companheiro para refletir.

Gosto muito da companhia dos meus dois netos adolescentes. Já os levei à Amazônia.  Tiveram a oportunidade de abraçar uma árvore de 700 anos. Quando eles vêm aqui, respiram livros. Pretendo viajar mais com eles, embora já tenham seus próprios compromissos com as agendas cheias de atividades.

 

Quem são os profissionais da fotografia que admira?

Ansel Adams, que também era uma ativista, W Eugene Smith, Henri Cartier-Bresson. Admiro muito Sebastião Salgado, Amorim Bisilliat, Claudia Andujar, pela relação dela com os indígenas.

O que você diria para um jovem fotógrafo?

Ler muito sobre arte, culturas, poesia, literatura, reflexões sobre o ofício de fotografar. No tipo de fotografia que faço, ser andarilho é contar histórias. Fotografo o que me comove. Já recebi convites para outros países, mas sou apaixonado pela brasilidade. A minha compreensão do Brasil, como matriz criativa, meu modelo de universo, passa pelo povo. O sertão, a Mata Atlântica, o pescador caiçara, o amazônida, o pantaneiro, essas culturas abracei para celebrar.

Eu tenho absoluta consciência de que preciso formar, ou influenciar, outros fotógrafos, porque sou um cara em adiantado estado de extinção. Eu tive a possibilidade de andar muito e ainda me sinto com energia para desbravar.

Queria ter conhecido pessoalmente Susan Sontag, que falava que a fotografia é um grande arquivo da memória. E espero que tenham outros tantos fotógrafos que façam 60 ou mais livros em 50 anos de carreira.

O artista tem que ser uma seiva, amo essa palavra. Seiva que irriga a necessidade de plantar novas florestas. Eu gostaria de fazer mais, mas já fico feliz com as respostas das fotos, como a do tamanduá que viralizou [tamanduá mirim cego que fugia do fogo na região amazônica]. Jovens em Amsterdã reproduziram essa imagem, dando crédito para o original.

É difícil fazer dinheiro sendo ‘andarilho’ e free-lancer. Uma expedição longa de um mês, por exemplo, precisa de uma logística anterior, muito planejamento. Mas eu sempre fui ‘porra loca’. Demorei a perceber o trabalho precursor que eu estava fazendo. Graças às boas relações, tenho conseguido investimentos para os projetos. Mas já realizei muitas viagens sem pensar em dinheiro. Pretendo fazer um livro seminal da Amazônia, com o curador com Eder Chiodetto, reunindo 50 anos das minhas idas lá, numa, também homenagem a Euclides da Cunha.

Um de seus recentes projetos é sobre crianças, fale sobre isso:

O livro ‘Amazônia das crianças’ é uma guinada na minha carreira. Após dois anos de trabalho, será lançado este ano. Registrei fisionomias de meninos e meninas que vivem na maior floresta tropical do mundo. São dois volumes. No primeiro, 15 crianças de diferentes regiões da Amazônia que narram suas histórias. No outro, um guia de navegação, em que as experiências de cada uma são desdobradas em conceitos históricos, sociais, ecológicos e econômicos, com o objetivo de servir de apoio aos educadores em sala de aula.

Temos 29 milhões de amazônidas entre jovens e adultos. É com eles que temos de trabalhar para salvá-la, nisso se insere uma proposta de novo modelo econômico, proteção, segurança, cidadania. A organização da floresta é uma coisa fantástica. Temos que desenvolver nas crianças esse encantamento por ela. É preciso clamarmos por justiça, atitude. Lutar, buscar, a todo custo, transformar consciências. E, através do maravilhamento e da crítica, eu ajudo a transformar consciências. Acho que a função primordial do artista é essa: transformar.

Araquém Alcântara

@araquemoficial