Vivemos uma era de crises de todos os tipos, o que tornou a palavra policrise a mais utilizada no ano passado, em levantamento do Financial Times, descrevendo a interdependência de múltiplos desafios globais afetando sociedade, economia, política, saúde e meio ambiente. A palavra reflete a complexidade e a gravidade das crises contemporâneas, como recessão econômica, inflação, pandemias, poluição, guerras e mudanças climáticas, o que exige uma abordagem holística, além de visão ampla e integrada para resolver problemas. Some-se a isso a tragédia das enchentes este ano no Rio Grande do Sul, que ainda vive consequências diretas e indiretas. E temos o retrato de uma situação complexa, que exige a união de todos para mitigar os impactos, recuperar as perdas e construir um futuro mais sustentável e resiliente.
Cerca de metade das empresas de moda no estado foram diretamente afetadas, muitas paralisadas por até dois meses – a produção só recomeçou a partir de agosto, trazendo muitos prejuízos e incertezas para os negócios de moda, especialmente os pequenos. Segundo o Sebrae RS, o desastre climático acometeu ao menos 600 mil pequenos negócios do estado.
Apenas em Porto Alegre, cerca de 46 mil MPEs ficaram debaixo d’água durante os períodos mais críticos das enchentes, perdendo estoques e maquinário. Mesmo áreas que não sofreram alagamentos diretos, como a região da Serra e do Norte, enfrentaram sérios desafios logísticos devido às estradas interditadas e ao impacto no mercado consumidor gaúcho, com consequente queda nas vendas. Obviamente, isso afetou seriamente a cadeia produtiva de moda, que já vinha enfrentando dificuldades.
Entretanto, muitas ações colaborativas e de união aconteceram através de influenciadores e plataformas que se propuseram a divulgar e promover produtos gaúchos, reforçando a importância de valorizar a produção local. Solidariedade e espírito de colaboração também não faltaram.
A Defesa Civil do RS divulgou números impressionantes em termos de doações: foram doados 1,5 milhão de litros de água potável e 202,2 toneladas de alimentos diversos, 166.076 cestas básicas, 136 mil litros de leite, 98 mil cobertores, 24 mil colchões e 244 mil kits de higiene e limpeza. No total, foram contabilizados 3,375 milhões de itens recebidos e distribuídos, incluindo 62 mil sacos de ração animal, 42 mil fraldas e 364 mil kits de roupas. Roupas que foram destinadas, sim, para quem perdeu tudo, mas que, infelizmente, também foram descartadas em aterros e rodovias, em cenário de total desperdício de recursos.
Foram casos isolados, mas imagens nas redes sociais e na imprensa mostraram, inclusive, itens novos, com etiqueta, doados por confecções e lojas, descartados em aterros ou locais impróprios, em meio ao que já estava destruído pela tragédia. Situação, esta, que levantou discussões sobre a necessidade de uma melhor organização e triagem das doações, e o que fazer com o que sobrou nos abrigos, por exemplo, repassando a outras instituições ou providenciando a destinação adequada.
É preciso conscientizar a população para evitar o descarte de roupas e calçados, de forma irregular, em lixões clandestinos ou locais contaminados, afetando tanto quem descarta quanto quem recolhe esses itens, numa verdadeira epidemia de lixo têxtil, como no deserto do Atacama, no Chile - o segundo maior cemitério têxtil do mundo. O relatório A New Textiles Economy: Redesigning fashion’s future, da Fundação Ellen MacArthur, estima que mais de US$ 500 bilhões são perdidos ao ano por falta de reciclagem do vestuário. No Brasil, 20% dos resíduos têxteis são reciclados, segundo dados do Sebrae. O restante, cerca de 136 mil toneladas, acaba em lixões e aterros sanitários, evidenciando a necessidade de mais investimentos e conscientização sobre a reciclagem têxtil.
Para finalizar, deixamos como exemplo da força da moda gaúcha, uma das marcas afetadas pelas enchentes e que inspirou esta coluna, por sua capacidade de resistir e persistir, sem jamais se dar por vencida. A Re.Si.Ateliê, da designer Amanda Py, transforma o descarte da indústria calçadista em produtos únicos. São bolsas, acessórios, mochilas e carteiras produzidos a partir de materiais excedentes, que seriam descartados. Couro, tecidos, zíperes e metais ganham uma nova e permanente vida, num processo de produção totalmente artesanal através de mãos amorosas que dedicaram seu empenho, carinho e talento na materialização de cada produto. Amanda foi totalmente afetada pela enchente, tendo seu galpão inundado no 4º Distrito, mas já está de volta com a marca, pois “não tá morto quem luta e quem peleia”. Seguimos em frente!
Madeleine Müller, Stylist há 25 anos e produtora de moda. Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade Fernando Pessoa(UFP-Portugal); Pós-Graduada em Moda, Consumo e Comunicação (PUC-RS) e graduada em Direito (PUC-RS); Professora no Design de Moda da ESPM-POA; autora do livro “Admirável Moda Sustentável: vestindo um mundo novo”; ativista do movimento Fashion Revolution. Acredita numa moda responsável e ética, regenerativa de sistemas e agente de transformação social. Contato: madeleine.muller@gmail.com @madi_muller