Onne Fashion Talks - Madeleine Muller

MODA PÓS-ENCHENTE: RESILIÊNCIA E RECICLAGEM NA ORDEM DO DIA

MODA PÓS-ENCHENTE: RESILIÊNCIA E RECICLAGEM NA ORDEM DO DIA

Foto: Carlos Sillero
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    Vivemos uma era de crises de todos os tipos, o que tornou a palavra policrise a mais utilizada no ano passado, em levantamento do Financial Times, descrevendo a interdependência de múltiplos desafios globais afetando sociedade, economia, política, saúde e meio ambiente. A palavra reflete a complexidade e a gravidade das crises contemporâneas, como recessão econômica, inflação, pandemias, poluição, guerras e mudanças climáticas, o que exige uma abordagem holística, além de visão ampla e integrada para resolver problemas. Some-se a isso a tragédia das enchentes este ano no Rio Grande do Sul, que ainda vive consequências diretas e indiretas. E temos o retrato de uma situação complexa, que exige a união de todos para mitigar os impactos, recuperar as perdas e construir um futuro mais sustentável e resiliente.

     Cerca de metade das empresas de moda no estado foram diretamente afetadas, muitas paralisadas por até dois meses – a produção só recomeçou a partir de agosto, trazendo muitos prejuízos e incertezas para os negócios de moda, especialmente os pequenos. Segundo o Sebrae RS, o desastre climático acometeu ao menos 600 mil pequenos negócios do estado.

A obra leiloada de Eduardo Kobra, cuja venda reverteu em alimentos para os desabrigados das enchentes - Foto: divulgação Kobra
Mãos que recuperam e ressignificam materiais excedentes da indústria , movimentando a economia local - Foto: divulgação Amanda Py

     Apenas em Porto Alegre, cerca de 46 mil MPEs ficaram debaixo d’água durante os períodos mais críticos das enchentes, perdendo estoques e maquinário. Mesmo áreas que não sofreram alagamentos diretos, como a região da Serra e do Norte, enfrentaram sérios desafios logísticos devido às estradas interditadas e ao impacto no mercado consumidor gaúcho, com consequente queda nas vendas. Obviamente, isso afetou seriamente a cadeia produtiva de moda, que já vinha enfrentando dificuldades.

     Entretanto, muitas ações colaborativas e de união aconteceram através de influenciadores e plataformas que se propuseram a divulgar e promover produtos gaúchos, reforçando a importância de valorizar a produção local. Solidariedade e espírito de colaboração também não faltaram.

     A Defesa Civil do RS divulgou números impressionantes em termos de doações: foram doados 1,5 milhão de litros de água potável e 202,2 toneladas de alimentos diversos, 166.076 cestas básicas, 136 mil litros de leite, 98 mil cobertores, 24 mil colchões e 244 mil kits de higiene e limpeza. No total, foram contabilizados 3,375 milhões de itens recebidos e distribuídos, incluindo 62 mil sacos de ração animal, 42 mil fraldas e 364 mil kits de roupas. Roupas que foram destinadas, sim, para quem perdeu tudo, mas que, infelizmente, também foram descartadas em aterros e rodovias, em cenário de total desperdício de recursos.

Amanda Py, da Re.si.ateliê , volta a sorrir e a produzir em seu novo ateliê: força no recomeço! - Foto: divulgação Amanda Py

        Foram casos isolados, mas imagens nas redes sociais e na imprensa mostraram, inclusive, itens novos, com etiqueta, doados por confecções e lojas, descartados em aterros ou locais impróprios, em meio ao que já estava destruído pela tragédia. Situação, esta, que levantou discussões sobre a necessidade de uma melhor organização e triagem das doações, e o que fazer com o que sobrou nos abrigos, por exemplo, repassando a outras instituições ou providenciando a destinação adequada.

Produtos da economia circular feitos no estado por mulheres, com qualidade superior e de forma artesanal - Foto: divulgação Amanda Py

   É preciso conscientizar a população para evitar o descarte de roupas e calçados, de forma irregular, em lixões clandestinos ou locais contaminados, afetando tanto quem descarta quanto quem recolhe esses itens, numa verdadeira epidemia de lixo têxtil, como no deserto do Atacama, no Chile - o segundo maior cemitério têxtil do mundo. O relatório A New Textiles Economy: Redesigning fashion’s future, da Fundação Ellen MacArthur, estima que mais de US$ 500 bilhões são perdidos ao ano por falta de reciclagem do vestuário. No Brasil, 20% dos resíduos têxteis são reciclados, segundo dados do Sebrae. O restante, cerca de 136 mil toneladas, acaba em lixões e aterros sanitários, evidenciando a necessidade de mais investimentos e conscientização sobre a reciclagem têxtil.

     Para finalizar, deixamos como exemplo da força da moda gaúcha, uma das marcas afetadas pelas enchentes e que inspirou esta coluna, por sua capacidade de resistir e persistir, sem jamais se dar por vencida. A Re.Si.Ateliê, da designer Amanda Py, transforma o descarte da indústria calçadista em produtos únicos. São bolsas, acessórios, mochilas e carteiras produzidos a partir de materiais excedentes, que seriam descartados. Couro, tecidos, zíperes e metais ganham uma nova e permanente vida, num processo de produção totalmente artesanal através de mãos amorosas que dedicaram seu empenho, carinho e talento na materialização de cada produto. Amanda foi totalmente afetada pela enchente, tendo seu galpão inundado no 4º Distrito, mas já está de volta com a marca, pois “não tá morto quem luta e quem peleia”. Seguimos em frente!

Madeleine Müller, Stylist há 25 anos e produtora de moda. Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade
Fernando Pessoa(UFP-Portugal); Pós-Graduada em Moda, Consumo e Comunicação (PUC-RS) e graduada em
Direito (PUC-RS); Professora no Design de Moda da ESPM-POA; autora do livro “Admirável Moda Sustentável:
vestindo um mundo novo”; ativista do movimento Fashion Revolution. Acredita numa moda responsável e ética,
regenerativa de sistemas e agente de transformação social.
Contato: madeleine.muller@gmail.com
@madi_muller