Por Adriana Calabró e Criz Azevedo
São Paulo tem sido o porto do artista visual pernambucano Manoel Veiga (1966) desde a segunda metade dos anos 1990. Antes da mudança, estudou Engenharia Eletrônica e foi bolsista de iniciação científica em Física. Após um período profissional no mundo corporativo, decidiu abandonar a carreira inicial e dar lugar a uma imersão no mundo da arte. Passou a frequentar ateliês e a estreitar a comunicação com artistas, vindo a frequentar cursos no Brasil e na França, como a Escola de Belas Artes de Paris.
Em 2002, a expressão por meio da pintura passa a ganhar forma e identidade, quando começou a engatinhar nos experimentos com fenômenos naturais (difusão, gravidade, entre outros). De lá para cá, vem aperfeiçoando a técnica, a qual aplica pigmentos de tinta acrílica sobre a tela, borrifa água, e, nesse processo, água e tinta interagem formando fluxos únicos, além de pouco usar o pincel.
A fotografia também se insere no seu portifólio de criações, como as séries “Hubble”, iniciada em 2010, que vem se desdobrando até hoje, trazendo referências ao cosmo a partir de imagens do telescópio Hubble, e “Matéria Escura”, numa proposta nascida em 2015, que usou, como ponto de partida, imagens de pinturas de Caravaggio. Ambas as séries derivam dos trabalhos em pintura e foram realizadas por meio de impressão digital.
Qual é a sua definição sobre o que é fazer arte no Brasil de hoje? E como você mesmo se define como artista?
Fazer arte no Brasil significa lutar muito. Lutar para que seu trabalho e carreira avancem em meio a muitas atribulações, lutar para que a arte atinja mais pessoas onde a imensa maioria nunca entrou num museu ou galeria, lutar até contra certos pré-conceitos que ainda persistem em relação aos artistas e a nossa atividade como um todo. Artista tem de ser guerreiro, artista tem de ser teimoso! Precisamos ter força criativa, claro, mas precisamos ser empreendedores, produtores, RP. Assim somos, assim sou.
Quando você percebeu que sua arte estava sendo validada e procurada, tanto pelo público como pelo mercado?
Salvo raras exceções, esse é sempre um processo lento e instável. Validação institucional e comercialização nem sempre andam juntas, como deveria ser. Mas começamos a sentir que a carreira está andando bem quando conseguimos realizar uma exposição individual em instituição de prestígio (no meu caso foi a primeira, na Fundação Joaquim Nabuco em Recife, agosto de 2000) e galerias sérias começam a se interessar pelo seu trabalho.
Nascido no Recife, vivendo em São Paulo, com diversas incursões pelo Brasil e pelo mundo. Como você acha que a localidade interfere na arte? Ou, em outras palavras, quais são os limites da universalidade?
Acredito que os artistas são sempre muito sensíveis ao local onde vivem e isso se reflete de alguma maneira em seus trabalhos. Cultura é troca que depende de um contexto. O aprendizado artístico está sempre ligado à cultura visual de cada um que começa no local onde crescemos. A tradição daquele lugar vai ser naturalmente incorporada e vai interferir nas escolhas futuras do artista. Mas o mundo hoje está super conectado, é fácil viajar e mais fácil ainda acessar culturas diferentes de qualquer lugar do globo graças à internet.
Assim, nosso desenvolvimento visual hoje é muito complexo e a noção de “localidade” ganhou muitas nuances. De qualquer maneira, é onde vivemos que temos amigos com quem regularmente conversamos e pensamos a vida. Essa experiência é fundamental para a arte. E como estamos sempre falando de contextos específicos, na minha opinião não existe arte universal. Quando olhamos trabalhos que são distantes geograficamente ou no tempo, precisamos mergulhar naquela cultura para entendermos minimamente do que se trata. Para se captar automaticamente o simbolismo de um homem na cruz e portando uma coroa de espinhos, é preciso ser católico. Um indígena isolado, no máximo, vai ver ali violência, pura e simples.
Na sua história, há passagens pela engenharia eletrônica, um flerte com a física e com o mundo corporativo. Como tudo isso influenciou a arte que você produz hoje?
Sem esse percurso, jamais teria chegado ao trabalho que faço hoje! A passagem pela física, como aluno de iniciação científica, foi muito marcante e me levou a criar o processo de pintura que venho aprofundando há anos, onde transformo fenômenos naturais, como a difusão e a gravidade, em ferramentas de trabalho. É um processo indireto, mental, praticamente não uso pincéis, não há o gesto clássico do artista. A pintura é formada por vários fluxos reais de tinta e assim o fruidor é levado a uma experiência de espaço e tempo, assuntos que sempre me atraíram muito desde a graduação. A engenharia eletrônica me fez muito, muito íntimo dos computadores e todo esse universo, o que me levou a desenvolver séries de trabalhos digitais como a ‘Hubble’ e a ‘Matéria Escura’. Mas experiência como engenheiro, trabalhando em multinacional, também me deu base para lidar melhor com o desenvolvimento e gerência da minha carreira e com os profissionais sempre envolvidos, como produtores, curadores e galeristas.
Como é a relação do artista com as galerias, os museus e com o público final? Como um trabalho, à priori solitário, se mescla com os outros atores do sistema da arte?
Normalmente o trabalho “criativo” do artista é realmente solitário, mas a atividade profissional como um todo, envolve muito mais, como você bem frisou. Quando lidamos com cultura, a comunicação é parte essencial do processo. O artista que criou algo vai ser o primeiro a estabelecer pontes de entendimento entre sua intenção inicial e as leituras feitas por outros. Acho esse exercício de racionalização muito importante porque ajuda o artista a amadurecer seu pensamento, a ter mais clareza sobre o que está acontecendo com seu tralho para além de intuições iniciais e como consequência permite um aprofundamento da sua poética. Esse processo acontece sempre, mas vai ser diferente de acordo com o público envolvido e as circunstâncias. Assim o envolvimento do artista com galerias e museus é muito importante, pois cada um à sua maneira funciona como elo de conexão entre arte/artista e público.
O cosmos tem um lugar cativo na sua trajetória de pesquisa. Como surgiu esse interesse e como os estudos da astronomia atual dialogam com a sua arte?
Me interesso pelo cosmos desde que vi a palestra de um astrônomo mexicano no departamento de física da UFPE, no início da minha graduação em eng. Eletrônica. Fiquei fascinado com os fenômenos bizarros que conseguimos observar graças à escala gigantesca do universo. Os conceitos de tempo e espaço são levados a um novo limite, com acontecimentos que contradizem nossa experiência cotidiana. Estranhezas previstas pela Teoria da Relatividade de Einstein, como os buracos negros, não só foram comprovadas como viraram objetos de estudo cotidiano dos físicos. E em 1990, a NASA lançou telescópio espacial Hubble que deu início a uma revolução na astronomia. Imagens inacreditáveis que muito rapidamente começaram a chegar ao público. Acontece que a visualidade daquelas imagens de galáxias, nebulosas etc., é muito próxima do que eu vinha gerando em pintura e isso por uma conexão estrutural, não uma simples coincidência formal: os fenômenos naturais que eu estava usando para pintar, também estão presentes na escala cósmica. Assim veio a vontade de usar esse material como matéria-prima e surgiu a série ‘Hubble’ onde levo partes daquelas imagens para o computador e realizo manipulações específicas, resultando em novo universo fictício, poético. Esse novo envolvimento com o tempo e espaço em escala cósmica também me fez olhar novamente para o mestre barroco Caravaggio e associar os panejamentos de suas pinturas com o que os físicos chamam de “tecido cósmico”, uma analogia para o conceito de espaço-tempo na teoria da Relatividade. E assim, depois de outro tipo de manipulação no computador, um apagamento, surgiu a série ‘Matéria Escura’. E novas séries estão nascendo disso tudo!
Nos seus trabalhos sobre tela quase não há o uso do pincel, mas, sim, o direcionamento do fluxo de tinta de forma indireta. Quase como se a natureza dos elementos se organizasse sozinha. Em tempos de excesso de controle há aí uma questão filosófica?
Há, sim, uma questão filosófica! Mesmo da forma como trabalho, tenho bastante controle sobre o processo, fruto de anos de experimentação e estudo. Domino muito bem a paleta de cores e suas nuances, níveis de contraste, a estrutura espacial. Aprendi a provocar tipos diferentes de difusão que geram relações de espaço particulares dentro da minha pintura. Mas como se trata de provocar e conduzir fenômenos naturais, sempre vai haver espaço para o acaso e eu tiro proveito disso. Aprendi a trabalhar em etapas sem perder a fluência geral. Com o tempo, a natureza se transformou numa espécie de parceira criativa. Isso é muito importante para mim filosoficamente porque provocar fenômenos, observá-los, interferir para conduzilos, ser obrigado a reagir construtivamente aos imprevistos é uma metáfora para a vida.
Há pouco tempo, em outubro, você participou do Seminário Internacional “Percebendo a Arte: Princípios da Física e Desafios de Pesquisa”, financiado pela National Science Foundation (EUA). Conte-nos dessa experiência
Esse seminário, que aconteceu em outubro no Instituto Henri Poincaré (Sorbonne) em Paris, é um desdobramento de um projeto maior que começou em Cambridge, Inglaterra, em 2017, quando fui convidado para uma exposição no Instituto Isaac Newton, parte de um programa que discutiu a matemática da forma. Depois desse encontro, formamos um grupo composto por físicos, matemáticos, historiadores, curador e artistas que queria seguir aprofundando essa troca rica entre ciência e arte. Apresentamos projeto de colaboração, a qual foi o primeiro a envolver arte, aprovado pela National Science Foundation dos EUA, e o seminário em Paris faz parte dele. O objetivo foi de pensar como percebemos a arte a partir de diversas abordagens, provocar discussões e, a partir daí, estimular novas conexões interdisciplinares entre os participantes. Foram 24 palestrantes vindos de nove países, entre neurocientistas, psicólogos, físicos, matemáticos, artistas, semiólogos, filósofos e historiadores. Foi uma experiência extraordinária e tive a honra de abrir o encontro falando sobre estratégias desenvolvidas por artistas para guiar a forma como observamos as pinturas. Trouxe exemplos desde a China antiga, passando por mestres como Caravaggio e Velásquez, até o meu próprio trabalho.
Qual o seu objeto de pesquisa atual? Quais são os planos para 2024?
Atualmente sigo, como sempre, trabalhando em paralelo em diversas frentes, tanto na pintura quanto nas séries fotográficas como a ‘Hubble’ e ‘Matéria Escura’. Tenho inclusive uma nova série chamada ‘Espectros’ que está apenas no começo, embora eu a tenha mostrado na grande exposição antológica (recorte dos últimos 15 anos) que realizei no MAC USP em São Paulo, entre outubro do ano passado e março desse ano. Nela eu faço intervenções de pintura sobre trabalhos da ‘Matéria Escura’ (impressões sobre canvas), unindo assim dois grandes grupos de trabalhos. Há também nova série em desenvolvimento e ainda inédita, de objetos, onde uso um preto especial que absorve 99,8% da luz incidente. Mostrar esses novos trabalhos faz parte dos planos para 2024, mas quero destacar também uma nova colaboração com matemáticos poloneses, nascida das trocas criativas do seminário em Paris, e deve resultar numa exposição em Varsóvia.
Agradecimento:
Rita Lobo - Quartier des Arts
Manoel Veiga
www.manoelveiga.com.br
@manoel_veiga