“Já fui muito pobre, morei em casa sem piso. Em 2023, quando entregávamos fogões e kits de cozinha aos atingidos pela enchente em Muçum, no Vale do Taquari, me emocionei com a união e entrega do Grupo. Reforço que ações assim são a essência da RSI - Responsabilidade Social Individual -, quando o indivíduo assume a posição de auxiliar e cuidar do outro. Quando vamos para o Front da Vida, levamos a alma do nosso time. Essa essência nos torna capazes de colocar em prática ações que permitem às pessoas terem esperança e fé para continuar lutando e fazendo a diferença na reconstrução do Estado”.
RECONSTRUIR O EMOCIONAL
Com experiência em estresse pós-traumático, a psicóloga e Mestre em Gerontologia Biomédica Ivana Werner Mestre, sócia diretora do Gabinete de Psicologia Empresarial e do Núcleo de Competência Humana, atendeu como voluntária, e no sistema privado, pessoas afetadas pela enchente: “Os danos psicológicos foram devastadores. Nas primeiras semanas, foram acometidas por reações agudas de estresse, com prejuízos cognitivos e físicos. As sensações emocionais intensas produziram desde o medo paralisante à agitação desordenada. Logo a seguir, o temor e a ansiedade iniciais deram espaço para a tristeza, a depressão e a irritabilidade. Perdas materiais e de entes queridos, perda da dignidade e da esperança foram a tônica. Muitas viram suas memórias afetivas e os frutos de anos de esforço desfazerem-se em poucos dias. As identidades foram abaladas, a segurança do lar, destruída, trazendo à tona o sentimento de vazio existencial. Passados os primeiros impactos, os sujeitos precisaram lidar com a realidade, ‘nua e crua’ na busca pela elaboração e a readaptação. O apoio psicológico, psicossocial, o acolhimento e a escuta foram primordiais nesse momento trágico, desempenhando um papel fundamental no processo de cura do sofrimento psíquico pós-traumático. Foi essencial propiciar aos pacientes o desenvolvimento de dispositivos subjetivos para o enfrentamento da situação e dos traumas. O ressignificar, a resiliência e principalmente a busca de um novo sentido pela vida ajudaram na reconstrução psicológica, na superação e a minimizar os sintomas. A solidariedade e o senso de comunidade foram fundamentais e relevantes. Trouxeram o aconchego e a esperança. A força do coletivo, da benquerença, do amor, aliviou a sensação de desamparo. Mesmo quem não foi atingido diretamente, foi consumido pelo sentimento de luto, dor e melancolia, ocasionando uma série de questões e mudanças emocionais. Tempos de crise são também tempos de reflexão e de validação daqueles valores que permitem ao humano ser sempre humano”.
TODAS AS VIDAS IMPORTAM
A solidariedade também chegou aos animais das ilhas próximas a Porto Alegre. Um ícone da tragédia ganhou noticiários nacionais e internacionais: o cavalo Caramelo, que sobreviveu dias em pé sobre um telhado, sendo resgatado numa operação complexa e bem-sucedida. Heróis anônimos e conhecidos nas redes digitais não mediram esforços em navegar por botes, correndo risco de adquirir doenças como leptospirose. A rotina dos dias foi extenuante, mas o cansaço não sobrepujou a vontade de perseverar nos salvamentos. E assim aconteceram várias mobilizações. De um lado, os resgatistas, de outro, os abrigos para acolher, tratar, medicar, alimentar, entreter. No atendimento emergencial, a importância dos hospitais veterinários de campanha. Entre os engajados, a estudante de Psicologia Luísa Sigaran relata sua experiência, até hoje, como voluntária: “O Abrigo do Gasômetro nasceu da necessidade de resgatar e salvar animais atingidos pela enchente. Inicialmente, um hospital veterinário de campanha foi criado junto à orla do Gasômetro. Prestávamos auxílio a mais de 6.500 animais que desciam diretamente dos barcos. Conforme os dias passavam, as cidades iam sendo esvaziadas e o número de animais resgatados aumentava. Visto que éramos um hospital construído na urgência, optamos, naquele momento, por encaminhar os animais para abrigos parceiros, alguns destes montados pelos próprios organizadores do Abrigo do Gasômetro. Após muitos fecharem e outros apresentarem péssimas condições sanitárias e de bem-estar devido à falta de investimento público e preparo social, abrimos nosso próprio espaço de maneira permanente e com qualidade como uma forma de apoio à causa animal”.
Atualmente, está sendo estruturada a nova sede do Abrigo do Gasômetro em um sítio para dar continuidade aos cuidados dos animais da enchente e resgatar vítimas de maus-tratos. “O projeto visa a abrigar animais de todas as espécies e, futuramente, contar com atividades de educação ambiental, reabilitação animal e centro de resgate. Nosso trabalho é fruto de uma demanda estrutural e cíclica, provocada pela falta de políticas públicas permanentes que abarquem tantas problemáticas acerca da causa animal, como falta de investimento e realização de castração em massa, incentivo de adoções e controle de zoonoses”.
Para manter o abrigo são necessários mais de R$10 mil reais mensais. Doações são muito bem-vindas para cobrir a infraestrutura (água, luz, internet, materiais de construção, materiais de limpeza, transporte e alimentação dos voluntários) e custos com os animais (alimentação, veterinário, medicamentos, adestramento, procedimentos como castrações, internações, exames, transporte para clínicas e feiras de adoção). Acompanhe pelo Instagram @abrigodogasometro e compartilhe para que mais vidas possam ter seu destino reescrito.
O AMOR NOS TEMPOS DO DILÚVIO
A música como fio condutor de uma bela amizade, e ela daria mais provas durante a enchente em Porto Alegre. Assim aconteceu com JJ (Jennifer) Thames e Sergio Selbach. Ela, premiada cantora internacional de Blues de Las Vegas, EUA, conhecida como “Hurricane”. Ele, baixista, produtor de shows. Amigos desde 2018, se conheceram no Mississippi Delta Blues Festival, em Caxias do Sul/RS (maior festival neste estilo de música da América Latina). Tocaram juntos em uma banda quando JJ fez turnê pelo Brasil em 2019. A cantora retornaria ao Rio Grande do Sul diversas vezes para shows. Em abril de 2024, criaram um projeto previsto para lançamento em 2025. Para isso, JJ mudou-se temporariamente para a capital gaúcha. Imersa em um novo idioma e cultura, Sérgio quis proporcionar bons momentos à amiga, para que não se sentisse solitária.
Samba, música tradicional gaúcha, jantar no Hard Rock Café Porto Alegre, onde ele produz shows semanais, conversas, caipirinhas e churrasco. JJ alugou um apartamento no Bom Fim. Então, veio o dilúvio. Alagamentos na rua de Sergio, no Menino Deus, subiam continuamente. Quando o bairro foi evacuado, JJ ofereceu abrigo em seu apartamento no Bom Fim. Durante quase duas semanas, cozinharam juntos, choraram com as notícias, também riram até altas horas da madrugada. No meio de tudo isso, se apaixonaram. O casal começou a namorar em maio. No dia 3 de agosto, no palco do 2024 Mississippi Delta Blues Festival Preview, no Barra Shopping, a pediu em casamento. Os noivos trocarão alianças em maio de 2025 no The Memphis Juke Joint, em Caxias do Sul, com a presença de familiares e amigos. O Blues será tocado para celebrar o amor que nasceu do dilúvio.
VVOLUNTEER E HORIZONTES RS
As notícias pós-enchente têm trazido alento, instituições sendo reerguidas, novos negócios surgindo, mobilizações ajudando a impulsionar a economia do Rio Grande do Sul. Os verbos no presente e no gerúndio reforçam a constância dos atos, mas ainda há muito o que fazer pelos gaúchos no contexto humanitário, e isso precisa ser sublinhado, como ressalta Fábian Chelkanoff Thier, jornalista, professor do curso de pós-graduação online “Direitos Humanos e Cidadania Global” da PUCRS, coordenador humanitário da Vvolunteer - VV, plataforma digital focada em voluntariado, resposta humanitária e ações sociais. Fábian atua, também, no trabalho de campo. Atualmente, coordena grupos que viajam à região do Vale do Taquari, estruturados para limpar casas. Ação, esta, que faz parte do Projeto Horizontes RS e tem parcerias da Unleash, Galápagos, Rhama Analysis, além da Vvolunteer. “Há lugares, como o bairro Navegantes, em Encantado, que continuam tomados pelo barro, com 60 a 70 centímetros de espessura. No mês de setembro, reunimos doze pessoas com lava-jatos para a retirada da lama impregnada nas paredes das residências”, explica Fábian.
A Vvolunteer iniciou há 10 anos para que pessoas, empresas, estruturas privadas, que gostariam de ajudar, pudessem ter um direcionamento das possibilidades de como colaborar: “A VV entra para fazer essa relação entre os atores. Buscamos parceiros privados, apresentamos a eles uma série de possibilidades, apresentamos ONGs, trabalhos, necessidades e fazemos essa conexão. Medimos, de maneira bastante criteriosa, o impacto real nas pessoas. Realizamos um relatório social que não é só financeiro. As empresas e os parceiros nos procuram, pois sabem que o dinheiro será destinado para onde realmente é necessário. O relatório de impacto social é um dos grandes diferenciais do nosso trabalho”. A Vvolunteer é membro do Fórum de Refugiados da ONU, a ACNUR, e faz parte do Pacto Global da ONU, atuando em 21 países. Para saber mais, acesse @vvolunteer_br
REGISTROS PARA FICAR NA HISTÓRIA
Um olho na cena, outro na lente. E foram milhares de cliques de quem esteve junto a cenários jamais imaginados. A força e o volume das águas transformaram ruas do cotidiano e cartões postais de cidades. Para Porto Alegre, foi emblemático ver grande parte do seu Centro Histórico, onde os únicos transportes possíveis eram barcos, SUPs, caiaques, jet-skies. Por semanas, o silêncio nas ruas desta região foi uma das características mais marcantes. E quando as águas baixaram, a lama e a sujeira deixaram marcas ainda possíveis de identificar em muitos estabelecimentos.
EMPATIA E ESPERANÇA
“O mais fascinante da fotografia é ela poder contar uma história inteira através da captura de um instante. Tu estás vendo a tragédia diante dos teus olhos. Tu começas a imaginar a vida dessas pessoas. Não tem como não se sensibilizar com os momentos de uns amparando os outros. A gente ganha um pouquinho de esperança na humanidade. Se existe outra palavra além da solidariedade, eu acho que é empatia. A empatia de se colocar no lugar do outro. Não há ideologia política nessas horas. Ninguém pergunta de onde tu és, nem questiona a cor da pele, se tem dinheiro ou não. Isso, para mim, talvez seja a lição mais importante que este episódio trouxe”.
Zuza Seffrin / @ zuzafoto.fotografia
Captar detalhes e expressões do cotidiano urbano é uma das atividades que Zuza mais aprecia fazer. O que parece “invisível” aos olhos nas andanças pelas ruas ganha força nas lentes deste fotógrafo que iniciou sua trajetória profissional na publicidade nos anos 1980, tendo atuado para diversas campanhas ao longo de décadas, com destaque para fotos de grandes marcas de moda.
NÃO TÁ MORTO QUEM PELEIA
“Quando vi que a água avançaria sobre o quarto distrito, onde o estúdio do Marcelo Nunes (que uso) poderia ser seriamente atingido, corri pra tentar pegar alguma coisa. Não consegui. E o que vi, depois de 22 dias de 1,70m de água dentro do prédio, foi horrível: um cenário de guerra, nas ruas em volta e no térreo do estúdio (o segundo andar estava intacto). Era muita, mas muita coisa perdida no entorno: os escombros das casas e empresas todos pelas ruas. Destruição total. Mas o pior era o cheiro de morte e as ruínas. Não tinha como ficar lá. Hoje, mais de seis meses depois, as marcas ainda existem, mas a cidade está na luta pela reconstrução. Não tá morto quem peleia. Bora pelear!”.
Raul Krebs / @ raulkrebs
Fotógrafo publicitário, Raul Krebs é Mestre em Design Estratégico, pesquisador no campo da imagem e da semiótica, professor universitário, produtor cultural ligado ao Hub da Indústria Criativa PUCRS, artista visual e, algumas vezes, um atento narrador de histórias não lineares e ficciorreais através da fotografia, vídeo e arte conceitual.
MARCAS VISÍVEIS E INVISÍVEIS
“A cor barrenta da enchente deixou marcas profundas, tanto nas superfícies externas quanto internas, pintando paredes de casas, prédios, automóveis, muros, plantas, grades, postes e muito mais. Embora seja possível lavar e limpar tudo o que foi manchado, uma marca invisível e indelével persiste no interior das pessoas. A inundação trouxe não apenas destruição física, mas também um profundo sentimento de medo e incerteza sobre o futuro. Agora, o som da chuva, antes tranquilizador, desperta ansiedade e apreensão. A humanidade, em sua busca por expansão e progresso, ultrapassou os limites, destruindo indiscriminadamente o que a cerca. As cicatrizes deixadas pela enchente são um lembrete de que ainda há tempo para refletir e agir em prol do nosso planeta, antes que seja tarde demais”.
Nilton Santolin / @ niltonsantolin
Reconhecido por capturar a essência de momentos singulares, seja na fotografia documental, eventos, gastronomia, retratos pessoais ou projetos comerciais, Santolin iniciou sua trajetória em 1984. Autor de obras que exploram o cotidiano e a arquitetura de diversas cidades, com várias exposições realizadas no Brasil e no exterior. Além de seu trabalho fotográfico, atua como educador e palestrante, compartilhando seu conhecimento e experiência com outros profissionais e entusiastas da fotografia.
OUTRA PERSPECTIVA
“Logo que começou a possibilidade de inundação em Porto Alegre, ainda não tinha ideia da dimensão do que estaria por vir. Vi uma movimentação grande das pessoas. Percebi que o melhor papel que poderia desempenhar era levando o meu olhar para essa tragédia. Inicialmente, fiz fotos com a ideia de vender e arrecadar fundos para ajudar os afetados. No aspecto fotográfico, quis trazer algo menos duro. Não no sentido de maquiar ou subverter, mas de trazer outra perspectiva, destacando o comportamento humano perante o fato de forma poética”.
Nathan Carvalho / @ nfcarvalho
Inquietação, visão poética e assinatura autoral, o fotógrafo Nathan Carvalho vem, ao longo dos últimos 20 anos, construindo uma imagem de artista visual, que capta a alma humana, seja através da fotografia, dos retratos ou de outras plataformas onde atua. É autor de livros, tendo participado de exposições fotográficas. Em sua trajetória, formações em roteiro, direção de fotografia e cinema em países como Estados Unidos e Inglaterra.
Zuza, Krebs, Santolin e Nathan integram um projeto editorial com textos e imagens sobre a enchente, que será lançado em breve. Fazem parte, também, os fotógrafos Fernando Bueno, Fernanda Chemale, Alexandre Raupp, Popy Martins, Fabiano Benedetti e Brian Baldrati. A Onne&Only agradece a todos os fotógrafos que cederam suas imagens para enriquecermos este conteúdo.