Literatura

VAMOS LER OS CLÁSSICOS

VAMOS LER OS CLÁSSICOS

Sergius Gonzaga*
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         Na trepidação intensa do nosso tempo, o mergulho em alguns romances clássicos – todos com andamento mais vagaroso, prosa detalhista e vasta extensão – tornou-se uma tarefa particularmente intrincada para os leitores, sobremodo os mais jovens, acostumados à brevidade das mensagens nas redes sociais.

         Paradoxalmente, a pandemia em curso, apesar de seu rastro de sofrimento e incerteza, tem oferecido aos que podem ficar em casa a chance de aproveitar, com maior calma e atenção, algumas obras extraordinárias dos séculos anteriores. 

         Lê-las exige algum tipo de esforço, quase como se fosse uma aventura, mas o resultado final é de notável intensidade. Não apenas desvelam uma constelação de paixões humanas complexas e estremecedoras, como mostram aspectos geralmente ocultos da vida social, debatem ideias e questionam o sentido mais profundo da existência. 

         Essas obras exigem apenas certo esforço de concentração e a disponibilidade para ultrapassar as vinte ou trinta primeiras páginas das mesmas. E logo se entenderá o porquê de sua perenidade e de seu enquadramento no cânone universal.

O VERMELHO E O NEGRO (1830), de STENDHAL

       Oriundo da pequena nobreza interiorana, NAPOLEÃO BONAPARTE alçou-se à condição de homem mais poderoso, temido e amado da Europa, no período posterior à Revolução de 1789, sua vertiginosa ascensão representou para os jovens de extração humilde a possibilidade de romper as barreiras de classe e cumprir um destino de grandeza.  

       Contudo, a derrota de Napoleão em Waterloo (1815) e seu exílio definitivo possibilitaram o retorno da monarquia conservadora dos Bourbons (Restauração). Este período durou até 1830 e foi marcado por violenta repressão, censura, reacionarismo e imobilismo social. Os jovens plebeus viram seus projetos pessoais ruírem estrepitosamente.

        Este é o contexto de O VERMELHO E O NEGRO, escrito pelo ex-oficial dos exércitos napoleônicos, Henri Beyle (STENDHAL). O protagonista do romance, JULIEN SOREL, filho de um pobre carpinteiro, experimenta profundo desconforto com sua existência. 

        No entanto, o acaso lhe oferece a chance de obter educação esmerada, levando-o a tentar uma carreira tão rápida como a de seu ídolo, Napoleão. Para isso, se valerá de todos os meios possíveis. Ateu, entra em um seminário, já que tornar-se padre era então a única oportunidade de escalada para alguém de sua origem.

 

A história de sua trajetória ascensional envolve a ambição desmedida e as complexas maquinações que urde, mas também suas indecisões morais, sua complexa psicologia e, sobretudo, a paixão que é capaz de despertar em duas mulheres de estrato superior.  Contra Julien, pesam as intrigas do seminário, os preconceitos dos cortesões e o seu próprio arrivismo que não conhece limites.  O choque entre o indivíduo e o sistema torna-se então inevitável. 

        Pela primeira vez no século XIX, encontramos um personagem que não encarna valores absolutos (não é inteiramente bom nem mau). Embora nada o detenha na procura de realização de seus fins, e muitas vezes trate as mulheres que o amam a partir de um cálculo oportunista, ele é – ao mesmo tempo – um ser humano luminoso e frágil.          

        Seu comportamento representa uma transgressão, mas igualmente um protesto apaixonado contra a ordem conservadora. A ambivalência nos fascina: ora o admiramos, ora o desprezamos.  Esta intrincada dualidade é o centro de uma narrativa inesquecível.

 

Sergius Gonzaga, Professor de literatura brasileira e ensaísta

@gonzagasergius