Literatura - Sergius Gonzaga

“1984”, O CLÁSSICO DE ORWELL, MAIS ATUAL DO QUE NUNCA!

“1984”, O CLÁSSICO DE ORWELL, MAIS ATUAL DO QUE NUNCA!

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Lançado em 1949, o romance “1984”, talvez não seja uma excepcional obra literária. Falta-lhe a sutileza de linguagem e os tons cambiantes das narrativas maiores. No entanto, nenhuma outra ficção no século XX produziu tamanho impacto. Quando sua ressonância parecia estar diminuindo, um frívolo programa de tevê, mas de alcance mundial, trouxe de volta o “Big Brother” e reviveu o livro. O surgimento das redes com o vozerio dos idiotas, as “fake news” e as políticas de cancelamento o atualizaram ainda mais.

Na trilha de outros textos célebres - “Nós” (1924), de Ivan Zamiátin, e “Admirável Mundo Novo” (1932), de Aldous Huxley – “1984” constitui-se como distopia (o mesmo que antiutopia, projeção imaginativa com pretensões realistas e visão estremecedora sobre o futuro). Apesar da dívida com seus antecessores, especialmente com o russo, George Orwell (pseudônimo de Eric Blair) cria de forma persuasiva um insuperável sistema de terror e opressão – espécie de suma do poder totalitário absoluto – que tenderia a dominar o mundo nas décadas seguintes, valendo-se inclusive de modernos recursos tecnológicos.

Filho de um funcionário inglês, Eric Blair (1903-1949) nasceu na Índia e teve uma vida agitada, repleta de aventuras e adversidades, que registrou em obras jornalísticas como “Na pior em Paris e Londres” (1933), ou em romances como “Dias na Birmânia” (1934). Desde jovem, professou um socialismo mais sentimental do que teórico e foi essa disposição de empatia que o levou a lutar na Guerra Civil Espanhola.

Lá, foi gravemente ferido e lá, também, conheceu a brutalidade, o maquiavelismo e o desprezo pela vida humana com que a liderança soviética tratava os acontecimentos espanhóis. Dessa experiência resultou o melhor de seus livros – “Homenagem à Catalunha” (1938) – traduzido no Brasil como “Lutando na Espanha”, provavelmente a mais eletrizante reportagem histórica escrita no século passado.

“1984” tem como base o regime autocrático vigente na URSS. Tudo o que aparece no texto procede da irrespirável atmosfera de terror estabelecida por Stálin e o Partido Comunista: o controle da vida de cada indivíduo; a vigilância permanente sobre o cotidiano dos cidadãos; a repressão ilimitada; a supressão de todos os direitos humanos; o estado policialesco (no livro existe a “polícia do pensamento”); a contínua lavagem cerebral; a guerra contra a memória e o consequente apagamento do passado; a censura dos afetos; o nascimento de uma nova língua, visando aturdir intelectualmente a população. Em síntese, o inferno.

Ainda que a essência do texto represente situações a partir do mundo comunista, George Orwell tampouco observa com simpatia o sistema capitalista. Também este estava impregnado – sobremodo nos avanços tecnológicos e no poder midiático e financeiro – de elementos totalitários que deveriam ser combatidos.

O final de “1984” é amargo. Porém, como sua ação se passa em um futuro que virá a acontecer, a impugnação dessa hipótese de projeto despótico e desumano ainda pode ser feita. Certamente era a intenção de Orwell que seu leitor tomasse consciência do horror das tiranias contemporâneas e se erguesse contra elas.

Neste sentido, a escrita do romance é uma tentativa de contrapor-se à fala do espião Brien: “Se queres ver uma imagem do futuro, imagina uma bota pisoteando um rosto humano para sempre”.

Uma leitura indispensável.

Sergius Gonzaga

Foi professor de História da Literatura Ocidental e hoje trabalha com Literatura Brasileira (UFRGS). Ministra cursos e palestras no Capítulo 21 (e-mail: cap21cursos@gmail.com)

@gonzagasergius

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